VENT D'EST (1970) |
Talvez seja importante, porque salutar, não confundirmos a expressão "Je suis Charlie" com uma espécie de gloriosa conjugação de todas as ideias de liberdade sobre todas as conjunturas democráticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro).
O ataque à redacção do Charlie Hebdo, perpetrado por radicais islamistas, foi um crime hediondo. Aliás, é um crime hediondo — os seus ecos lançam perturbantes questões no nosso presente, marcando as formas de pensamento e acção para o futuro.
A rápida reacção contra o horror do terrorismo — condensada na frase “Je suis Charlie” — gerou impressionantes eventos colectivos. Em todo o caso, começando a revelar fissuras que, de alguma maneira, já estavam anunciadas na sua formulação: como sustentar o colectivo a partir do “eu” (“je”) da frase militante?
Não é simples lidar com tal contradição, até porque, muitas vezes, a informação democrática acolheu um perverso efeito ditatorial: tudo aquilo que possa suscitar qualquer dúvida sobre as linguagens mobilizadas (incluindo, claro, este texto) corre o risco de ser automaticamente rotulado de comportamento cúmplice dos terroristas.
Acontece que o caso Charlie Hebdo nos relembra que a crença corrente nas virtudes da globalização não pode ser confundida com um milagre automático, apaziguador e redentor de todas as formas de comunicação humana. Verificamos mesmo que a circulação universal das imagens, ainda que sustentada pela fascinante ubiquidade da Internet, não funciona como mecanismo produtor de intocáveis equilíbrios democráticos.
Ao contrário do que sustentam os discursos esquerdistas (que, com impressionante facilidade, contaminam muitos dispositivos de informação televisiva), colocar estas dúvidas não é o mesmo que atenuar, muito menos justificar, a cegueira civilizacional do acto terrorista contra o Charlie Hebdo. São dúvidas que se enraízam no reconhecimento incómodo de que não há nada de universal nos modos de produção, circulação, entendimento, significação e simbologia das imagens.
Uma coisa é defendermos o direito inalienável dos criadores do Charlie Hebdo conceberem e publicarem as suas imagens. Outra coisa, bem diferente, consiste em tentar mostrar alguma disponibilidade filosófica e moral para reconhecer que existem conjunturas ideológicas (por vezes, também religiosas) que lidam de forma radicalmente diferente com o universo plural das imagens.
Para o “Charlie” que somos, os sistemas de imagens (incluindo o que sustenta a degradação humana do Big Brother televisivo, inequivocamente condenada pelas nossas leis constitucionais) podem e devem existir num espaço aberto. O certo é que há outras paisagens figurativas em que, não a imagem, mas a sua ausência, pode ser um valor crucial de união afectiva.
Num velho filme sobre convulsões políticas (Vent d’Est, 1970), Jean-Luc Godard aplicava a dupla significação da palavra francesa “juste” (“justo” e “apenas”), para lembrar que uma imagem não é um objecto “justo”, é “apenas” uma imagem (ce n’est pas une image juste, c’est juste une image). Essa dicotomia continua a assombrar-nos: uma imagem não é um instrumento definitivo de nenhuma lei universal.