Bradley Cooper e Clint Eastwood |
De que falamos quando falamos de uma situação de guerra? O novo filme de Clint Eastwood surge na encruzilhada dessa pergunta, da sua importância e também dos seus equívocos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Em guerra com Clint Eastwood'.
Uma vez que este texto se coloca sob o signo de um filme sobre uma situação de guerra — Sniper Americano, de Clint Eastwood —, começo por avisar que a disposição das minhas ideias no terreno corre o risco de ofender amigos e inimigos. Devo, por isso, desde já, pedir desculpa aos primeiros.
Confunde-me o modo como Sniper Americano tem suscitado as mais inusitadas considerações ideológicas (que, em qualquer caso, não podem ser reduzidas a um discurso unívoco). Não é uma questão portuguesa. É mesmo, sobretudo, um fenómeno americano, com o filme a desencadear paixões contraditórias do outro lado do Atlântico, em muitos casos favorecendo uma equação maniqueísta: um filme que coloca em cena alguém (um “sniper”) que, por definição, agride outros seres humanos só poderá ser uma “consagração” cega da sua actividade...
Confesso o mesmo tipo de perplexidade que experimento face ao dispositivo de pensamento em torno do atentado contra o Charlie Hebdo. A saber: não iremos restringir o quadro legal das nossas liberdades... Tudo bem. Mas até que ponto a força simbólica das nossas convicções consegue desviar as balas das Kalashnikovs e compreender a extrema complexidade histórica, cultural e política do seu pano de fundo?
Pensava eu que uma preciosa lição da semiologia dos anos 60 aplicada ao cinema (cf. Christian Metz) constituía saber adquirido. Ou seja: há uma diferença — narrativa, estrutural e simbólica — entre o discurso de uma personagem e o discurso do filme em que surge.
Em Apocalypse Now (1979), por exemplo, a personagem de Martin Sheen está enraizada numa lógica militar rigorosamente idêntica à do protagonista de Sniper Americano: destruir o outro que o assombra. No entanto, ainda estou para ler alguma condenação de Francis Ford Coppola por ter encenado uma personagem cujo comportamento decorre de uma missão específica, concreta e iniludível, de assassinato desse outro (“com absoluta devastação”, como se diz nos diálogos).
Não há pacifismo simples. E nem sequer estou a referir-me à realidade, nua e crua, da realpolitik cujas derivações, transparentes ou enigmáticas, não cabem no espaço destas linhas. Falo de cinema e também, necessariamente, de televisão. E espanto-me com o facto de Hollywood — cuja riqueza artística me apaixona — continuar a gerar alguns filmes de “super-heróis”, totalmente maniqueístas no plano ideológico, assustadoramente estúpidos na sua dramaturgia, filmes tantas vezes ignorados porque são “para miúdos”, ao mesmo tempo que o problema parece estar na inteligência cinematográfica e no difícil humanismo de um senhor chamado... Clint Eastwood!
Tudo isto, convém relembrar, enquanto vivemos rodeados pela vergonha humana do Big Brother e seus derivados. Compreendo, sem qualquer acinte, que se possa não partilhar a visão de Eastwood. Mas queria menos idealismo e mais política face à nossa miséria audiovisual.