sábado, janeiro 03, 2015

À conversa com Benoît Jacquot (2/2)

Benoît Jacquot e Catherine Deneuve — rodagem de Três Corações
O novo filme de Benoît Jacquot confirma a singularidade do seu lugar no interior do cinema francês: Três Corações corresponde a uma bela aventura de intimidades — este é o registo global da conversa com Jacquot que esteve na base da entrevista publicada no Diário de Notícias (26 Dezembro).

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Para além do cinema, também já trabalhou para televisão — há alguma diferença?
Não. Digamos que há apenas uma diferença de perspectiva, no sentido em que, tendo trabalhado poucas vezes para televisão, o fiz na condição de ter sensivelmente os mesmos meios que utilizo para fazer um filme de cinema. Antes do digital, por exemplo, quando se filmava apenas em película, exigia filmar em 35 mm (não em 16): não queria, nem que fosse em relação aos actores, que se instalasse a sensação de que se estava a rodar qualquer coisa de diferente e desprezável. Enfim, sem esquecer que em certas situações — por exemplo, ao fazer um filme para televisão com Catherine Deneuve — posso ter os meios que quiser.
Há quem diga que, agora, o que mudou é o facto de, com o digital, se poder repetir o mesmo plano infinitamente mais vezes do que com a película. Isso acontece consigo?
Não, para mim nada mudou. Em qualquer caso, em película ou digital, não quero filmar o mesmo plano mais de três vezes — é uma excepção quando vou além. Aliás, sempre que possível, uma vez basta.
Quando acontece qualquer coisa de acidental no interior de um enquadramento, normalmente aceita isso?
Sim, claro — aliás, os actores também. Por exemplo, agora estou a finalizar um filme que rodei no Verão, Diário de uma Criada de Quarto, com uma jovem actriz de que gosto muito, Léa Seydoux (com quem fiz Adeus, Minha Rainha). Para além das suas grandes qualidades como actriz, ela é alguém que sabe, imagem por imagem, tudo o que fez — não conheço muitos exemplos assim. Por isso mesmo, não lhe queria mostrar o filme numa altura em que já não fosse possível alterar fosse o que fosse, correndo o risco de a ouvir dizer que tinha feito isto ou aquilo e não foi aproveitado. Mostrei-lhe o filme recentemente e há uma longa cena, filmada num único plano, em que ela contracena com uma outra actriz — tinha três tomadas do plano e, claro, escolhi a que me pareceu melhor. Ora, ela pediu-me por tudo para escolher outra em que, segundo ela, tinha representado muito melhor. Fui ver. Há alguns pormenores (por exemplo, de acerto do enquadramento) que, em termos académicos, são menos perfeitos, mas é um facto que há nela qualquer coisa de mais intenso, imperceptível, mesmo para mim, no momento da montagem... E fiz a troca.
Quer isso dizer que, por vezes, o actor ou a actriz pode ter, por assim dizer, uma razão que é mais forte que a realização?
Não é por vezes — é sempre. O actor ou a actriz que se entrega totalmente ao filme sabe, em última instância, mais do que eu sobre o próprio filme.
Encontra esse tipo de atitude e de trabalho noutros cineastas contemporâneos que o interessem especialmente?
Sim, sem dúvida, em França e noutros países. Em França, em particular, são pessoas que conheço, trabalhando, afinal, com orçamentos idênticos aos meus. Arnaud Desplechin é um deles; Abdelatif Kechiche, Olivier Assayas também... Seremos uma dezena de homens e mulheres, o que já é muito, que acreditamos o suficiente no cinema para tentarmos praticá-lo como uma profissão de fé. Como se fôssemos à igreja.