quinta-feira, janeiro 01, 2015

À conversa com Benoît Jacquot (1/2)

O novo filme de Benoît Jacquot confirma a singularidade do seu lugar no interior do cinema francês: Três Corações corresponde a uma bela aventura de intimidades — este é o registo global da conversa com Jacquot que esteve na base da entrevista publicada no Diário de Notícias (26 Dezembro).

Tendo em conta a sua filmografia, aceita que se diga que pertence a uma tradição melodramática francesa?
Em princípio, não, porque não estou seguro de saber identificar essa tradição. Conheço a tradição melodramática italiana e também, claro, a de Hollywood. Tenho também a sensação de que no cinema português (mesmo não o conhecendo muito bem) há um linha melodramática.
François Truffaut
Mas não há algo de melodramático que liga, por exemplo, Max Ophüls a André Téchiné, passando por François Truffaut?
Sim, embora eu aí não utilizasse a classificação de melodramático. Isto porque, para mim, o melodrama é a tradução “popular” da tragédia (popular entre aspas porque, neste caso, é quase sinónimo de cinematográfico).
Há nesse cinema uma visão “sociológica” (também entre aspas) das relações amorosas em paralelo com as transformações de usos e costumes.
Aí, há uma tradição francesa que passa, de facto, por cineastas como Truffaut. Nesse sentido, mesmo quando posso considerar que os meus filmes estão próximos de algumas tendências americanas, sou obrigado a pensar, ou a reconhecer, que são filmes muito franceses. E, em última instância, um autêntico cineasta francês não pode fazer outra coisa que não seja ser francês.
Em Três Corações, encontramos essa pulsão trágica, mas também uma espécie de banalidade do viver que, logo na cena inicial, leva Charlotte Gainsbourg a dizer: “’É a província”.
Era mesmo a ideia fundadora do projecto: inscrever uma história passional num contexto o mais banal possível. Ou seja: inscrever o poético no prosaico. Para mim, o prosaico era a província, com essa maneira de viver que faz com que, a partir das nove da noite, já não se veja ninguém, ao mesmo tempo que persistem os rituais sociais que, por assim dizer, traçam uma diagonal através das diferentes classes. Outra noção inicial era a situação do homem que, à noite, está só numa cidade de província porque perdeu o comboio — provavelmente, sente-se mais perdido do que se estivesse no meio do deserto do Sara.
E, tal como já o disse, esse homem apenas existe através das relações que estabelece (ou não) com as mulheres...
Sim, será que é também uma coisa muito francesa? [riso]. É um facto que, nos últimos anos, todos os meus filmes têm como personagem central uma mulher. Ora, antes mesmo de me envolver no projecto de Três Corações, já tinha tomado a decisão de fazer um filme cujo centro fosse um homem. Não é que a questão me interesse muito, mas digo para mim próprio que o facto de ter feito todos esses filmes sobre mulheres resulta de ser, ao que parece..., um homem, como tal interessando-me explorar um mundo que, originariamente, não é o meu. Se tivesse de escrever, digamos, uma espécie de autobiografia, fá-lo-ia por certo exclusivamente, ou quase, através das mulheres que conheci, com quem vivi ou trabalhei. Ao fazer um filme cujo centro é masculino, implico-me e inscrevo-me, desde logo, de uma maneira quase identitária.
Tudo isso se prolonga, por certo, através das relações com os actores e as actrizes.
Sem dúvida. As relações com as actrizes sempre foram muito simples. Com os actores, é sempre mais complicado — não sei muito bem o que lhes dizer e sou levado a pedir-lhes que encontrem sozinhos o que é preciso para o papel. Com as actrizes, sei dizer-lhes de imediato o que fazer, já que, de certa maneira, vêm ocupar um lugar fantasmático que resulta do facto ser eu, homem, a observá-las, mulheres. Os actores acabam por construir a sua personagem, observando-me.
Acontece pedir-lhes, actores ou actrizes, que invistam algo de pessoal, porventura secreto, nas respectivas personagens?
Nem é preciso pedir-lhes — digamos que isso faz parte do roteiro de trabalho. Por exemplo, um actor como Benoît Poelvoorde, muito popular em França...
... sobretudo em comédia.
Aí está: sente-se que, por trás da sua maneira de fazer rir, há algo de uma loucura atormentada. Era isso que me interessava nele e também que o interessava a ele: poder trazer cá para fora aquilo que, na maior parte dos seus papéis, apenas adivinhamos.
Se considerarmos Três Corações um conto moral, parece-lhe que podemos dizer que as mulheres estão sempre mais próximas da verdade, enquanto os homens se envolvem muito mais com a mentira?
Sim, creio que podemos dizer as coisas assim. É uma inversão do lugar-comum segundo o qual as mulheres, na sua “coquetterie”, são impelidas a dissimular ou mentir. Se considerarmos que os efeitos de verdade nascem de um confronto com o real, a minha experiência diz-me que, de um modo geral, as mulheres estão muito mais disponíveis para enfrentar a fronteira desse real, enquanto os homens tentam escapar-lhe. Há nos homens um misto de fraqueza e cobardia que, no momento de verdade, os leva a afastar-se. É algo que está na grande literatura e, em particular, num autor como Checkhov. Em francês, temos uma palavra para isso: “veule” — é uma palavra que se aplica apenas a homens, nunca a mulheres.