A série The Killing passou da Dinamarca para os EUA, mantendo o mesmo perturbante desencanto moral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro), com o título 'A crise da bondade'.
A série policial The Killing (Fox Crime) ilustra uma dupla e curiosa tendência dos actuais tempos televisivos. Por um lado, trata-se da versão americana de uma série dinamarquesa (título original: Forbrydelsen), integrando esse fenómeno transversal de popularidade — literária, cinematográfica, televisiva — de alguns produtos que, em anos recentes, têm surgido dos países escandinavos; por outro lado, o seu desenvolvimento acabou por envolver a cada vez mais importante e poderosa plataforma Netflix (na origem de House of Cards, por exemplo), que assumiu a produção da quarta temporada depois da desistência do canal AMC (o mesmo de Mad Men, Breaking Bad e The Walking Dead).
De acordo com uma lógica muito “hitchcockiana”, os episódios da quarta temporada surgiram marcados por uma densa teia de inocências e culpas. Assim, a investigação do assassinato de uma família, conduzida pelos detectives Sarah Linden (Mireille Enos) e Stephen Holder (Joel Kinnaman), acabará por se enredar com as suas responsabilidades na morte de James Skinner (Elias Koteas), tema com que encerrou a temporada anterior.
Muito mais do que o tradicional dispositivo dramático deste modelo de narrativas (“quem, como, onde”), o que faz funcionar The Killing é a insidiosa sensação de que nenhuma personagem se esgota na ordem social ou moral que, conscientemente ou não, representa — nesta perspectiva, afigura-se especialmente importante a estranha ambivalência da personagem de Margaret Rayne, a mulher que dirige uma academia militar para rapazes, interpretada por Joan Allen, por certo uma das maiores, e também mais subaproveitadas, actrizes do cinema americano contemporâneo.
Tanto na versão dinamarquesa, como nesta reconversão “made in USA”, The Killing reflecte um desencanto moral que, obviamente, transcende a sua inserção geográfica ou cultural. Em particular nas personagens de Sarah e Stephen, há um pragmatismo cruel que, em última instância, nos faz duvidar de todas as formas de bondade — não é simpático reconhecê-lo, mas eles são um espelho das crises do nosso imaginário.