domingo, dezembro 07, 2014

Mário Soares + José Sócrates + TV

FRITZ LANG
Fúria
(1936)
Como é que as televisões fizeram a "reportagem" da visita de Mário Soares à prisão onde se encontra José Sócrates? Eis uma questão que nos remete, necessariamente, para o questionar de um jornalismo que se afastou de qualquer valor humanista — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Novembro), com o título 'Que vemos quando vemos Sócrates?'.

Imagens do nosso tempo: Mário Soares assediado por um grupo de repórteres televisivos, à porta do estabelecimento prisional de Évora, onde foi visitar José Sócrates. Já nem sequer existe o mais ancestral respeito por alguém à beira de completar 90 anos [hoje, 7 de Dezembro]. Para muitos repórteres, o poder de ter um microfone na mão apenas visa dois objectivos: obter um soundbyte que possa funcionar fora de qualquer contexto coerente ou, com ou sem soundbyte, intimidar alguém de modo a provocar-lhe um discurso impreciso e desconexo.
Semelhante estupidez moral é multiplicada por uma insinuação torpe: todo aquele que manifestar alguma centelha de solidariedade com José Sócrates só pode ser um cavernoso cúmplice de todos os males que, ao longo dos séculos, marcaram a sociedade portuguesa. Daí que importe lembrar o terrível assombramento: mesmo que José Sócrates venha a ser condenado pelos tribunais (e só podemos desejar que a justiça satisfaça os nossos ideais colectivos), isso não legitima a falta de valores de um jornalismo empenhado em fazer de cada dia uma parada de personagens automaticamente “suspeitas” — sem esquecer que ainda há cidadãos, como Mário Soares, que resistem a ser instrumentalizados por quem não quer nem sabe escutar.
Mário Soares
No plano político, todos os partidos — com amargo destaque para os de esquerda, teoricamente ligados a intransigentes valores humanistas — são também responsáveis por este estado de coisas. Porquê? Porque, com poucas excepções, os seus militantes têm assistido na mais absoluta passividade intelectual à transformação da paisagem televisiva numa selva que consagra o desrespeito pela dignidade humana (veja-se o horror quotidiano de Big Brother e seus derivados), acolhendo tudo o que possa ser alarmismo ou agitação gratuita (como a “entrevista” a que Mário Soares foi sujeito).
O grande cinema clássico encerra muitas lições actualíssimas sobre esse efeito de turba que pode ser gerado por uma sociedade incapaz de parar para pensar — reveja-se o admirável Fúria (1936), de Fritz Lang. Acima de tudo, repare-se como mestres como Lang souberam expor a contradição dramática entre a vulnerabilidade individual e a cegueira colectiva.
O aparato televisivo dominante define-se por uma ideia de transparência que, de facto, oscila entre uma cândida ignorância e o cinismo mais violento. Houve mesmo quem, em nome da “reportagem” ou da “teoria”, visse um ou dois segundos de imagens de José Sócrates a chegar ao Campus de Justiça e se atrevesse a especular sobre os seus estados de alma, quiçá sobre a sua inevitável culpabilidade... Semelhante atitude não consegue sequer entender que, mesmo que o processo se salde por uma prisão perpétua, o jornalismo que assim actua há muito abandonou o seu território clássico de sensatez, pedagogia e inteligência.