quinta-feira, dezembro 11, 2014

A abstenção segundo o PCP

Fotograma de IVAN O TERRÍVEL (1944-1958)
de Sergei Mikhailovich Eisenstein
Na quarta-feira [10 Dez. 2014], a Câmara de Lisboa (de maioria PS) discutiu a atribuição da Chave de Honra da Cidade ao antigo Presidente da República e histórico socialista Mário Soares, proposta assinada pelo presidente do município, António Costa, e que foi aprovada com abstenção do PCP e o voto contra do CDS-PP.

[Notícia DN]

Que o CDS-PP vote contra esta homenagem da Câmara de Lisboa a Mários Soares, eis o que se compreende. E não há qualquer ironia em tal compreensão — concordando ou não com a posição do partido de Paulo Portas, há que lhe reconhecer a qualidade mínima da coerência. Como importa reconhecer a salutar frieza política do PSD, votando a favor, a par do PS. Em todo o caso, a abstenção do Partido Comunista Português suscita alguns reparos.

1 - A ESQUERDA: Há muitos anos empenhado em denegrir o Partido Socialista (em objectiva cumplicidade com tudo o que é grupúsculo mais ou menos extremado) por aquilo que seria a resistência do PS a favorecer a unidade da esquerda, o PCP dá-se ao luxo de se abster — quer dizer, de se situar numa posição que se apresenta como "neutra" — num momento de homenagem a uma das figuras inapagáveis da história da esquerda em Portugal. Quer isto dizer que, partilhando a demagogia corrente no espaço tele-político, o PCP escolhe a fulanização contra o primado das ideias.


2 - A HISTÓRIA: Através da demissão simbólica que, neste caso, a abstenção configura, o PCP consegue rasurar toda uma memória que começa na cumplicidade de Mário Soares e Álvaro Cunhal no dia 1 de Maio de 1974 (sem prejuízo de reconhecermos, et pour cause, que essa proximidade rapidamente passou a ser vivida como clivagem irreparável). Dito de outro modo: o PCP opta por colocar-se na posição de quem, à distância, consegue sempre lidar com as contradições da história a partir do domínio casto de uma "neutralidade" avessa à amargura irrecusável das memórias.

3 - A CIDADANIA: Numa conjuntura socio-mediática de profundo menosprezo pela dignidade humana (veja-se o triunfo da vergonha moral do Big Brother televisivo, sistematicamente ignorada por todos os partidos políticos), o PCP ajuda a enterrar um pouco mais a chaga da indiferença: para a sua "neutralidade", o indivíduo — neste caso, de nome Mário Soares — não existe a não ser como derivativo de algum espaço político (leia-se: partidário). Dito de outro modo: o PCP não consegue conceber que o ser humano possa não se esgotar na mera catalogação ideológica.

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Claro que há um problema de fundo que este comportamento do PCP envolve, mascarando-o — problema cujo agravamento, importa também não o escamotear, não pode ser desligado da demissão ideológica e ética do próprio Partido Socialista, recusando pensá-lo. Esse problema é o da mistificação simbólica a que chegou a noção de e-s-q-u-e-r-d-a.
Aliás, como é óbvio, o problema só pode ser enfrentado — ou, pelo menos, pensado — se não esquecermos que a sua formulação é inseparável do patético esvaziamento argumentativo a que chegou a noção de d-i-r-e-i-t-a.
Uma das heranças fulcrais do imaginário do 25 de Abril — a possibilidade de pensar para além da dicotomia direita/esquerda — foi metodicamente traída por todas as organizações partidárias, no fundo cedendo à necessidade (?) de manter um rótulo eleitoral que, alimentando o vazio de infinitos debates televisivos, mantenha o eleitorado refém de escolhas mecânicas e mais ou menos automatizadas.
A possível superação destas barreiras está, obviamente, entregue à história dos indivíduos e das organizações, das ideias e da sua dinâmica — e, não o escamoteemos, pode até traduzir-se num reforço importante e enriquecedor do confronto direita/esquerda.
Em todo o caso, para quem nos massacra com um discurso teleológico de defesa da pureza virginal da esquerda, assumir uma posição de "neutralidade" face à homenagem a um cidadão que, justamente na história da esquerda portuguesa, está longe de ser uma abstracção, constitui um prodigioso acto falhado. O PCP quis votar contra e não foi capaz — em nome da esquerda?