sexta-feira, outubro 31, 2014

Histórias da “coisa” sexual

De que falamos quando falamos de sexo? E com que imagens o falamos? Eis algumas interrogações que O Quarto Azul, de Mathieu Amalric, nos ajuda a percorrer — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Outubro).

O modo como falamos da sexualidade é um sinal. É sempre. De quê? De tudo e mais alguma coisa. Podemos convocar o papá Freud para nos ensinar a percorrer o labirinto das nossas alegrias, silêncios e medos. Mas falta-nos — desde logo na comunicação social — alguma arte e engenho para, com ou sem o autor de Totem e Tabu, enfrentarmos o aqui e agora da “coisa”.
Penso em tais atribulações a propósito de O Quarto Azul, filme interpretado e dirigido por Mathieu Amalric, adaptando um romance de Georges Simenon. De facto, em tempos mediaticamente mais democráticos — e, sobretudo, numa sociedade que valorizasse os valores mais nobres da inteligência humana —, a sua encenação muito crua (muito “gráfica”, como se diz agora, adaptando de forma simplista o graphic inglês) dos encontros secretos de um casal adúltero seria, por certo, pretexto para muitas e variadas reflexões sobre as imagens e as palavras com que lidamos com a sexualidade.
Mas não. Nada disso acontece. E são os programas da chamada “reality TV” (desde Big Brother a Casa dos Segredos) que passaram a ocupar, literalmente, o espaço social, educando (?) crianças e adolescentes para uma sexualidade anedótica, pitoresca e instrumental em que o outro — sobretudo se for uma mulher — se define apenas como objecto descartável da performance de um qualquer protagonista.
Fiel à frieza e desencanto da escrita de Simenon, O Quarto Azul encena as relações de Julien (o próprio Amalric) e Esther (Stéphanie Cléau, que reparte com o realizador a autoria do argumento adaptado) como uma demanda paradoxal: por um lado, os amantes perseguem uma utopia da entrega que, em boa verdade, não conhece os seus limites; por outro lado, a ordem social, apesar de construída sobre o elogio das singularidades do indivíduo, ignora o carácter irredutível do desejo sexual.
Nada disso, entenda-se, nos oferece qualquer certeza sobre o sexo “normal” e o sexo “libertador”, o amor “legal” ou o amor “maligno”. Aliás, perpassa por O Quarto Azul uma noção muito cruel que, creio, podemos aprender na escrita de Freud: a de que, no interior da nossa procura do prazer, há sempre “algo” mais que labora, contaminando tal procura com uma descarnada insatisfação.
Há outra maneira, por certo mais simples, de dizer tudo isto: O Quarto Azul é um filme genuinamente adulto, e para adultos. Há nele um sentido de risco estranho aos desígnios de um tempo em que a atitude corrente face às obras (cinematográficas ou não) mais contundentes se reduz ao soar de campainhas de alarme — na prática, isso faz com que um filme tão sério e tão adulto como Apocalypse Now, ao passar algures num canal de televisão, alta madrugada, tenha de ter as suas imagens conspurcadas por uma estúpida bolinha vermelha. A sociedade inventada pela reality TV é, afinal, um mundo de obrigatória infantilização das pessoas e suas relações.