quarta-feira, outubro 01, 2014

Do realismo ao romanesco

Há também no cinema português um gosto por olhar à sua volta. Sempre houve, na verdade. E Os Gatos Não Têm Vertigens, de António-Pedro Vasconcelos, é mais um exemplo nesse sentido — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Setembro), com o título 'Romanesco e cinefilia'.

A dificuldade em abordar o quotidiano português é, não poucas vezes, apontada como uma limitação do cinema que se faz no nosso país. Mas a formulação do problema tende quase sempre para um maniqueísmo redutor — de facto, as telenovelas andam a “retratar” esse quotidiano há décadas e não passam de um formato rotineiro, combinando simplismo temático e indigência estética. Seja como for, há uma questão de fundo que importa reconhecer: a vitalidade artística de uma cinematografia passa também (entre muitas outras coisas) por essa vontade de olhar à sua volta.
Desde a sua primeira longa-metragem, Perdido por Cem (1973), António-Pedro Vasconcelos é um cineasta que se tem mantido fiel a tal vontade. E através de histórias que podem ir desde uma desencantada nostalgia política, em Oxalá (1981), porventura o seu filme mais pessoal, até à fria contemplação de alguns mecanismos de corrupção política, em Call Girl (2007).
Os Gatos Não Têm Vertigens é mais um passo na mesma direcção. A meu ver, a sua maior virtude passa, paradoxalmente, pela calculada “inverosimilhança” dramática do respectivo ponto de partida: a insólita aliança de uma viúva (Maria do Céu Guerra) e um jovem à deriva (João Jesus) escapa a qualquer naturalismo típico de telenovela, acabando por desvendar um tecido social que se revela em dorida ebulição.
Há, aqui, um grau de realismo que, em qualquer caso, não pode ser desligado de um obstinado gosto romanesco. E tendo em conta (também) o trabalho de crítico de cinema que António-Pedro Vasconcelos desenvolveu ao longo de muitos anos, creio que não será abusivo considerar que tal romanesco abraça a herança plural de um classicismo simultaneamente europeu e americano. A identidade nacional é, afinal, apenas uma das componentes da paixão cinéfila.