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ALFRED HITCHCOCK Fotograma de Os Pássaros (1963) |
1. A crise no BES fez entrar na gíria social uma nova dualidade mediática: o "bom" e o "mau" servem, agora, para classificar a esquizofrenia de um banco que, pelos vistos, mexe não apenas com os dinheiros do cidadão comum, mas com o edifício económico-político de todo um país.
2. Pergunto-me, por isso mesmo, até que ponto muitos membros da classe política e comentadores da mesma área (por vezes, coincidindo na mesma pessoa pública) alguma vez reflectiram sobre o efeito que a sua linguagem cifrada desencadeia no referido cidadão comum. Quem é que, neste país, em particular na agitação pueril do espaço televisivo, ainda pensa a política como uma linguagem? E a economia como um sistema de significações?
3. Isto porque, vale a pena recordá-lo, basta um crítico de cinema pronunciar-se sobre qualquer coisa menos óbvia — por exemplo: a erotização simbólica de muitos grandes planos de Hitchcock, ou o modo como a herança da montagem de Eisenstein se reflecte na obra de Godard —, para de imediato ser alvo de acusações de "pretensiosismo" (e estou a ser pudico na evocação de tais acusações), devidamente multiplicadas pela avalancha de estupidez que cobriu muitas zonas das chamadas "redes sociais".
4. Em contraponto, muitos dos referidos analistas políticos parecem acreditar que os seus rituais de purificação moral — entre a "bondade" de algum dinheiro e a "malvadez" de outro — produz no espaço da informação outra coisa que não seja o recalcamento da pergunta que o senso comum não pode deixar de formular. A saber: porque é que vivemos num país em que se podem lançar suspeitas difamatórias em nome de algumas escassas centenas de euros, enquanto que o "desaparecimento" no éter de alguns milhares de milhões de euros — qualquer coisa que começa por um algarismo "A" e, depois, se estende para A.000.000.0000 de euros — é tratado como um fascinante imbróglio de teoria económica?
5. O senso comum pergunta. E porque tende a gerar automatismos colectivos, o mesmo senso comum responde, implícita ou explicitamente, com a demonização de toda a política e toda a economia. É uma simplificação abusiva? Claro que sim — ninguém pretende sugerir que o senso comum consegue mais do que multiplicar a sua própria incapacidade de passar para além da superfície das coisas. Acontece que tal demonização contribui, ainda mais, para a desagregação dos nossos laços comunicacionais e sociais — mesmo quando somos protegidos por analistas que se assumem como oráculos das catástrofes de um futuro que, perversamente, já aconteceu.