segunda-feira, julho 14, 2014

O cinema, as ideias e a música
segundo Derek Jarman (3)


Este texto é um excerto de um artigo sobre Derek Jarman originalmente publicado na edição de 27 de junho do suplemento Q, com o título ‘Por detrás da câmara de Derek Jarman’. 

Jon Savage explica em Sketchbooks que, "apesar dos filmes se manterem como a expressão mais conhecida da prodigiosa obra de Derek Jarman, eles não se podem separar da sua vida quotidiana e da sua posição dentro da cultura britânica como um outsider, um ativista, um comentador e catalisador”. Para Jarman, como ali acrescenta, “tudo estava fundido com tudo numa espécie de gesamtkunstwerk vivo que incluía a pintura, a cenografia, os diários publicados, os telediscos pop e o seu jardim em Dungeness [localidade costeira na região de Kent onde viveu os seus últimos anos]”. E isto, conclui, “é o que faz dele tão único e impossível de categorizar”. Jon Savage defende ainda uma importância maior do trabalho nos telediscos na definição dos caminhos pelos quais seguiria um cinema muitas vezes dominado pela estética do Super 8, que frequentemente surgia não apenas como opção estética mas também prática, já que "os baixos custos e a flexibilidade operacional eram ali igualados por um imediatismo expressivo".

Os telediscos, para nomes como, entre outros, os The Smiths, Marc Almond, Marianne Faithfull ou Bryan Ferry, levaram-no, de facto, a uma nova geração de espectadores e a novos públicos nos anos 80. Mas foi com os Pet Shop Boys que definiu um mais vasto corpo de trabalho. Não apenas ao rodar telediscos para canções como It’s a Sin ou Rent, mas ao assinar os filmes que serviram de cenário à primeira digressão do grupo, em 1989, e que o BFI editou depois em vídeo como Projections. Neil Tennant, vocalista dos Pet Shop Boys, conheceu Derek Jarman por alturas em que este soube que era seropositivo. "Politicamente estávamos no terceiro mandato de Mrs. Thatcher e o nosso álbum Actually [de 1987] era parcialmente um statement anti-thatcherismo”, explica no texto que apresenta em Sketchbooks. Derek foi, lembra Neil Tennant, “uma importante figura do anti-thatcherismo, ao mesmo tempo que era um artista”. E tinha “uma forte agenda política”, que Neil Tennant crê ter surgido “por causa da sida e também da Cláusula 28, aquela infame legislação que afastou a ‘promoção da homossexualidade' das escolas”. Neil Tennant acrescenta ainda: “Podemos ver as suas opiniões como extremas, mas na altura havia muitas razões para estarmos zangados.” E confessa: “O que nos uniu ao Derek foi ser contra a cultura, o que ainda somos e o Derek ainda seria. Os seus diários são historicamente um registo importante da sua ira quanto ao que estava a acontecer em Inglaterra e como o mundo gay estava politizado.”

Vale a pena recordar o que escreveu o próprio Derek Jarman sobre o resultado desta parceria, sobretudo o trabalho usado nas projeções durante concertos (em Modern Nature, volume de 1992 que junta os seus diários de 1989 e 90). A 19 de julho de 1989 Derek Jarman filmou os Pet Shop Boys em Wembley (Londres) e comentou as boas críticas na imprensa. “Seja o que acontecer é entretenimento – dança espetacular, fatos coloridos.” E “os filmes no fundo”, que eram de sua autoria, “de Super 8 esticados a 70mm – funcionam!”.


Já este ano, durante a edição 2014 do London Flare – o Festival de Cinema Gay e Lésbico anualmente organizado pelo BFI –, teve estreia mundial o filme Will You Dance With Me?, que acrescenta um importante episódio à história do relacionamento do cinema de Derek Jarman com a música. Na verdade o filme não é mais que o conjunto de imagens que, com uma câmara VHS, Derek Jarman rodou durante uma noite de 1984 num pequeno clube de bairro com vista ao trabalho de preparação do que seria (três anos depois) Empire State, de Ron Peck. Na noite de estreia do filme na sala maior do National Film Theatre, o próprio Ron Peck recordou o momento, contando que estavam então a fazer experiências sobre várias personagens em Londres e um dos lugares a observar era um clube, o Benjy's. “Era um lugar curioso, porque era gerido familiarmente. Atraía uma população local, muito relaxada e amigável”, descreveu. Convidaram cerca de cem pessoas numa tarde, criando-se assim “uma noite ficcionada num clube” entre habituées e os atores que iam fazer testes, contando com o DJ habitual da casa. Ron trabalhava com uma câmara. E Derek Jarman “ia filmar outros aspetos do clube, nomeadamente os movimentos das personagens”. Pediu-lhe então para filmar a dança “de uma maneira diferente”. O filme que tinha em mente “tinha a ver com tensões sociais e das dificuldades das pessoas”. Eram tempos difíceis, descreve, e aquele clube “era um lugar de fuga, de escapismo”. Filmar as pessoas a dançar era então a missão de Derek Jarman por uma noite, ao som de canções da época de nomes como os Break Machine, Frankie Goes to Hollywood, Shannon, Evelyn Thomas, Pointer Sisters ou Hazell Dean. Ao rever recentemente as imagens, Ron Peck confessa ter ficado “espantado com o controlo” de Jarman sobre a câmara: “Filmou com uma VHS, que era a nova tecnologia da altura. Ele dirige-se às pessoas e gradualmente está mais envolvido com o clube e as pessoas.” O filme é, como descreve, “uma experiência” e “não foi pensado para ser mostrado”. Não tem “um princípio nem um fim, mas há uma progressão”. Porque era um teste não tinha um título. A dada altura Ron notou que Derek Jarman “pergunta a um rapaz se dança com ele. E a tensão parte daí. Será que a pessoa a quem ele pede para dançar vai mesmo dançar com ele?”...

Nos seus diários Jarman registara, a 24 de junho de 89: “Só vou ao cinema hoje por amizade ou nostalgia. Não consigo ver nada que não seja baseado na vida do autor. O trabalho dos atores, da câmara, toda a parafernália não me dão prazer sem o elemento autobiográfico.” Podemos dizer que, tal como nos demais títulos da sua obra, também neste filme agora estreado postumamente foi fiel ao seu pensamento.