terça-feira, junho 17, 2014

O ânus, as nádegas e as rótulas do futebol

LEE FRIEDLANDER
1963
Na televisão portuguesa, o futebol passou a integrar as mais admiráveis derivações de pedagogia medicinal — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV" do Diário de Notícias (13 Junho), com o título 'O ânus e a rótula'.

1. Por estes dias, estreou-se nas salas escuras um filme chamado A Vida Invisível, realizado por Vítor Gonçalves, a meu ver um dos mais belos objectos de cinema que, em anos recentes, se produziram num país chamado Portugal. Digamos, para simplificar, que não foi um dos temas prioritários da informação televisiva.

2. Entretanto, soubemos de um país em que um dirigente desportivo se refere ao mundo do futebol aplicando alguns inovadores conceitos teóricos como “ânus” e “nádegas”. Não só soubemos, como citámos cuidadosamente e comentámos longamente, distanciando-nos de qualquer desvio pela nossa vida invisível.

3. Ocupados com a gravidade de tais atribulações fisiológicas, fomos abalados pela enigmática lesão de um jogador de futebol. De tal modo que nos empenhámos em tirar cursos acelerados de osteologia, podendo agora especular sobre tendinites da rótula com o mesmo à vontade com que discutimos o mais recente axioma proferido por um qualquer “famoso”, posando com um copo de whisky na mão.

4. Aliás, é bom saber que o mundo da globalização virtual está connosco e vela pela nossa felicidade. A prova? Faça-se uma pesquisa no Google com as palavras “a vida invisível Vítor Gonçalves” e observe-se: “cerca de 140 mil resultados”. Nada mau. Faça-se, então, o mesmo com duas palavras mágicas: “rótula Ronaldo”. O resultado sobe para 1.380.000! Aleluia! A democracia não é coisa vã!

5. Suponhamos que um argumentista de cinema escrevia uma história sobre um país abençoado por alguns talentosos dirigentes futebolísticos, onde a televisão ministra cursos práticos sobre lesões ósseas. Alguém consegue imaginar as desgraças públicas a que esse argumentista estaria sujeito? Suponhamos até que, no seu delírio, o mesmo argumentista inventava concursos televisivos de cantigas protagonizados por esforçados amadores, capazes de cantar pior do que eu... Em todo o caso, caro leitor, para seu descanso, posso garantir-lhe que não estou à beira de gravar o meu primeiro CD.