quarta-feira, junho 18, 2014

No mundo de Guillaume Gallienne (1/2)

Et voilà: A comédia francesa existe, resiste e persiste. E, mesmo apenas através do seu primeiro filme como realizador, Guillaume Gallienne distingue-se como um dos seus grandes talentos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Junho), com o título 'A comédia sexual que venceu os Césares do cinema francês'.

No passado dia 28 de Fevereiro, na cerimónia dos Césares do cinema francês, eram grandes as expectativas em torno de um título muito especial, com uma trajectória polémica: A Vida de Adèle. Conseguiria o filme de Abdellatif Kechiche, sobre o amor de duas mulheres, repetir o impacto que tivera, em Maio de 2013, no Festival de Cannes? E, na disputa dos prémios principais, que força teriam os filmes de Asghar Farhadi (O Passado) ou Roman Polanski (Vénus de Vison)?
Pois bem, a consagração pertenceu A Mamã, os Rapazes e Eu, fenómeno cujo impacto nos ecrãs franceses (perto de 3 milhões de espectadores) é indissociável da popularidade do seu realizador Guillaume Gallienne. Aliás, o filme conseguiu a proeza de acumular duas das mais cobiçadas distinções: não apenas a de melhor filme, mas também a de melhor primeiro filme.
É verdade: apesar da sua vasta filmografia — e também de uma notável carreira teatral —, Gallienne estreava-se na realização. Mais do que isso: os prémios de melhor actor e melhor argumento adaptado foram para... Guillaume Gallienne (que, aliás, adapta uma peça teatral de sua autoria). A Mamã, os Rapazes e Eu acabaria por arrebatar um total de cinco Césares, sendo o quinto para Valerie Deseine, na categoria de melhor montagem. Que aconteceu, então, com A Vida de Adèle? Recebeu um único prémio, na categoria de melhor esperança feminina, para Adèle Exarchopoulos.
Enfim, escusado será dizer que esta é uma obra pessoalíssima em que Gallienne, mesmo com compreensível pudor, reconhece alguns ecos da sua história particular. Estamos no domínio da comédia familiar e social, centrada num “drama” clássico: o protagonista é alguém que não se sente bem no papel que lhe é atribuído.
Não se trata, no entanto, de uma mera questão de inadequação motivada por factores externos, como seria, por exemplo, a incompatibilidade entre a profissão do protagonista e a sua vocação. Nada disso. A figura central, de nome... Guillaume, é alguém que a mãe trata como se fosse... homossexual. Aliás, o título original é esclarecedor: quando chama os seus três filhos para as refeições, a mãe separa as suas identidades, dizendo “Rapazes e Guillaume, para a mesa!” (Les Garçons et Guillaume, à Table!).
Podemos, então, perguntar: afinal, qual é a identidade sexual de Guillaume? Não é um enigma policial, mas quase. Isto porque o filme encena o seu dia a dia como um desconcertante processo de interrogação em que, no limite, ele se imagina como personagem de uma bizarra aventura existencial. Mais do que isso: A Mamã, os Rapazes e Eu conserva a ironia da peça original, apresentando Guillaume na dupla condição de narrador e actor, num atribulado ziguezague que o faz passar entre cenas familiares, equívocos sociais e introspecções mais ou menos esforçadas. Tudo envolvido num elaborado humor, ora terno, ora cruel, em que, inevitavelmente, a personagem da mãe adquire um decisivo papel psicológico e simbólico. Talvez por isso, a interpretação da mãe está entregue a... Guillaume Gallienne.