domingo, junho 08, 2014

Monica Lewinsky e a cultura da humilhação

FOTO: Mark Seliger / Vanity Fair
Num livro admirável que marcou a dinâmica cultural da década de 90 made in USACulture of Complaint (1993) —, Robert Hughes avaliava os efeitos de uma certa "purificação" de pensamento e práticas sociais, de que o politicamente correcto era a bandeira mais visível. De alguma maneira, a cultura da humilhação a que, agora, Monica Lewinsky se refere pode ser interpretada como um sucedâneo de tal contexto — da hiper-dramatização de todos os "desvios", passou-se para a destruição mediática dos "faltosos", virtual pelos meios, muito real nos seus efeitos:

>>> É verdade: agora estamos todos ligados. Podemos 'twitar' uma revolução nas ruas ou informar sobre grandes e pequenos eventos. Mas estamos também presos num 'loop' de difamação e vergonha, em que nos tornámos ao mesmo tempo criminosos e vítimas. Talvez não nos tenhamos tornado uma sociedade mais cruel — embora seja um facto que nos sentimos desse modo —, mas a Internet alterou de forma brutal o tom das nossas interacções. A facilidade, a velocidade e o alcance que os nossos recursos electrónicos nos oferecem podem tornar-nos mais frios, mais fúteis e menos preocupados com as consequências das nossas brincadeiras e dos nossos preconceitos. Tendo vivido a humilhação na sua mais radical intimidade, surpreendo-me com o à vontade com que nos entregámos a esta nova maneira de ser.

São palavras que Monica Lewinsky escreve num notável texto — 'Vergonha e sobrevivência' — publicado na Vanity Fair [edição de Junho, com Jon Hamm na capa]. Entenda-se: aos 40 anos de idade (completados a 23 de Julho de 1973), não se trata para ela de entrar num qualquer processo de negação ou denegação da sua relação, revelada ao mundo em 1998, com o então Presidente Bill Clinton, desencadeando um gigantesco escândalo (moral e político). Aliás, para além de todos os factos e suas drásticas consequências, Lewinsky faz questão em sublinhar que, sem prejuízo de reconhecer os seus erros, se tratou sempre de uma relação de mútuo consentimento. Trata-se, isso sim, de não aceitar ficar como aquela a que Clinton chamou "essa mulher" — that woman ou, como ela escreve, That Woman


Num contexto em que Hillary Clinton emerge como uma muito série candidata a tornar-se a primeira mulher a assumir a Presidência dos EUA [2016], também não está em jogo qualquer acerto de contas com os Clintons: "As suas vidas seguiram em frente; ocupam lugares importantes e poderosos na cena global. Não lhes desejo qualquer mal. E compreendo por inteiro que aquilo que me aconteceu e a questão do meu futuro são exteriores a qualquer um deles."
O que Lewinsky procura e, mais do que isso, reivindica é o direito a viver de acordo com a sua narrativa e não a de um universo mediático em que o esmagamento da dignidade do ser humano não é um tema eventual, mas um objectivo quotidiano. Tal reivindicação vai ao ponto de questionar algumas abordagens "feministas" que reduziram Lewinsky à condição patética de marioneta de um discurso estereotipado e, afinal, no seu equívoco estilo libertário, agressivamente moralista (mesmo se, como recorda Hadley Freeman em artigo no jornal The Guardian, seja prudente não confundir a atitude algumas mulheres com todo o feminismo).
Em tudo e por tudo, trata-se de resistir à formatação grosseira da sua própria imagem — afinal, passaram-se dezasseis anos desde que Monica Lewinsky foi conhecida por todo o mundo através da fotografia do seu passaporte e o assumir da pose afirmativa com que o fotógrafo Mark Seliger a devolve ao espaço da sua própria história, agora contada na primeira pessoa.