quinta-feira, junho 26, 2014

Jake Gyllenhaal x 2

Como adaptar um texto de José Saramago? Sobretudo, como adaptar um romance de especiais ressonâncias simbólicas como é O Homem Duplicado: Denis Villeneuve conseguiu uma solução equilibrada e envolvente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Uma parábola de Saramago filmada por um cineasta do Canadá'.

O menos que se pode dizer da versão cinematográfica do romance O Homem Duplicado, de José Saramago, é que nunca seria fácil “transpor” para uma narrativa em filme aquilo que nasceu de uma escrita metódica e obsessiva. A saber: a história enigmática de um homem que, um belo dia, ao ver um filme, descobre um actor que, pura e simplesmente, é igual a si próprio...
O filme O Homem Duplicado começa por ter o mérito de não tentar “ilustrar” o romance, apostando antes na possibilidade de refazer a sua perturbante mensagem humana e humanista: até que ponto a nossa identidade é uma máscara que, afinal, pode pertencer a outro? Ou ainda: quando dizemos “eu”, até que ponto aquilo que somos coincide com o que imaginamos ser?
Nesta perspectiva, poderemos dizer que, para além das inevitáveis diferenças de peripécias entre livro e filme, o segundo consegue manter uma consiste fidelidade ao “espírito” do primeiro, confirmando o carácter universal desta parábola existencial que Saramago publicou em 2002. Aliás, tal universalismo está de alguma maneira ilustrado pela própria origem de O Homem Duplicado, uma produção proveniente do Canadá, em colaboração com a Espanha.
Realizado pelo canadiano Denis Villeneuve (de quem, há cerca de um ano, se estreou o “thriller” Raptadas), O Homem Duplicado envolve um inevitável e complexo desafio de interpretação. Assim, é o americano Jake Gyllenhaal que assume as duas personagens “iguais”, num frente a frente que, graças aos modernos efeitos especiais, lhe permite estar na mesma imagem sem que a própria manipulação técnica seja detectável. Estamos, afinal, perante uma solução idêntica à que, há mais de vinte anos, descobrimos num dos títulos nucleares da filmografia de outro cineasta canadiano, David Cronenberg: em Dead Ringers/Irmãos Inseparáveis (1988), Jeremy Irons interpretava dois médicos, irmãos gémeos, cuja interacção — inclusive no plano físico — era fundamental.
Esta é a quarta vez que uma obra de Saramago está na origem de uma longa-metragem. Das quatro, apenas a produção de uma delas — Embargo (2010), de António Ferreira — é de origem especificamente portuguesa. Antes, o francês Georges Sluizer tinha filmado A Jangada de Pedra (2002) e o brasileiro Fernando Meirelles dirigira Ensaio sobre a Cegueira (2008), com um elenco que incluía, entre outros, Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Gael García Bernal e Danny Glover. A estreia internacional de O Homem Duplicado ocorreu, em Setembro de 2013, no Festival de Toronto.