quarta-feira, junho 04, 2014

Catherine Deneuve em tom intimista

Ela Está de Partida é um pequeno grande filme do cinema francês, centrado numa notável composição de Catherine Deneuve — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Junho), com o título 'Na intimidade do cinema francês'.

Nos últimos anos, Catherine Deneuve tem gerido a sua carreira em função de uma inteligente secundarização. Em sentido literal: perante a raridade de grandes personagens adequadas à sua idade (70 anos), temo-la visto abdicar de um estatuto dominante, integrando elencos que funcionam, antes do mais, pelo colectivo, como em Um Conto de Natal (Arnaud Desplechin, 2008), ou desafiando, com saudável ironia, qualquer nostalgia de tempos de outro glamour, sendo Potiche (François Ozon, 2010) o exemplo mais subtil e divertido.
A última vez que a tínhamos descoberto numa personagem de grande intensidade dramática, central na arquitectura narrativa de um filme, terá sido sob a direcção de André Téchiné, contracenando com Gérard Depardieu, em Os Tempos que Mudam (2004). Agora, perante a estreia de Ela Está de Partida, de Emmanuelle Bercot, não podemos deixar de reconhecer o risco que Deneuve assume, num papel de metódico e delicado despojamento emocional, como talvez já não lhe acontecesse desde Drôle d’Endroit pour une Rencontre (1988), obra-prima de François Dupeyron, nunca estreada nas salas portuguesas (curiosamente, também com Gérard Depardieu).
Ela Está de Partida possui a marca de um certo cinema “social” francês — de que Téchiné, justamente, poderá ser uma das mais sofisticadas referências contemporâneas — cuja observação do quotidiano conduz a uma revelação inesperada das suas personagens centrais. Neste caso, podemos mesmo dizer que tal processo funciona como insólita e paradoxal auto-revelação, já que Bettie (Deneuve) vive uma saga intimista que, para além dos problemas de gestão do seu restaurante, a conduz a uma reavaliação das suas relações e, no limite, a uma redescoberta da sua capacidade de amar.
Deneuve sustenta toda a primeira parte do filme numa espécie de angustiado e fascinante “one-woman-show”. A deambulação de Bettie, vagueando no seu automóvel por uma França interior, observada muito para além de qualquer cliché turístico, é uma pequena proeza de encenação que Bercot sustenta com assinalável contenção, dir-se-ia experimentando a possibilidade de fazer uma “reportagem” sobre a sua actriz. Depois, a partir do momento em que Charly (Nemo Schiffman), o neto de Bettie, entra na história, Ela Está de Partida transforma-se num retrato de gerações, também elas apresentadas sem cedências a lugares-comuns mais ou menos moralistas.
Muitas vezes se diz que, para o melhor ou para o pior, o cinema francês conserva uma dimensão psicológica, enraizada numa longa tradição, que o distingue da maior parte das cinematografias europeias. Seja como for, vale a pena acrescentar que tal atitude, ou melhor, tal disponibilidade, não pode ser separada da existência de produções relativamente pequenas como Ela Está de Partida apostadas em não perder o contacto com as convulsões do presente — pequenos filmes, grande cinema.