segunda-feira, junho 02, 2014

Assim nasceu o rock em Portugal (parte 1)

Este texto é a primeira parte de um artigo originalmente publicado na edição de 24 de maio do suplemento Q. do DN com o título 'Enquanto a rapaziada tocava guitarra não tinha tempo para a política'. 

Em agosto de 1963 o mundo descobria uma canção que rapidamente se transformou num ícone do seu tempo. Com o fulgor de quem, a cada nova gravação, ajudava a inventar as bases da emergente pop, os Beatles celebravam então um dos seus mais luminosos hinos de juventude cantando “She Loves You, yeah yeah yeah”... Por essa altura já Portugal tinha entrado na era pop/rock, cabendo a um EP conjunto d’Os Conchas e Daniel Bacelar, editado em 1960, a honra de estrear discograficamente uma nova música que, deste lado da fronteira, teve as suas primeiras manifestações ainda em finais dos anos 50, em Coimbra, com os Babies (onde militava, entre outros, José Cid). Mesmo tendo chegado depois desse EP de 1960 – que nascera como consequência do concurso da Rádio Renascença Caloiros da Canção – assim como depois do célebre Tous Les Garçons et Les Filles, de Françoise Hardy (editado em 1962), o “ié ié” que os Beatles cantavam em She Loves You acabou retroativamente por dar nome a uma nova vaga musical que começava a ganhar expressão em vários territórios. Por ela nasceram e vibraram os primeiros pólos de agitação pop/rock em Portugal, assim como os primeiros discos e carreiras.

“O ié-ié nasceu na Grã Bretanha em 1963, com os Beatles, sob o nome de pop music, e que a França, pouco depois, assumiu como yé-yé (os brasileiros, sempre exagerados, foram para o ié-ié-ié)”, recorda Luís Pinheiro de Almeida, autor de Biografia do Ié-Ié livro que, mais que documentar apenas este movimento, propõe um retrato arrumado das primeiras aventuras pop/rock no Portugal dos sessentas. O ié-ié não foi um fenómeno exclusivamente português, mas antes o reflexo em várias geografias do impacte que os Shadows, os Beatles e os demais que então entravam em cena lançavam como a mais entusiasmante forma musical para o público jovem naquele tempo. “Em França o yé-yé foi claramente um movimento sério, editorial, cultural, profissional, um modo de ser e de viver que até ajudou ao Maio de 68”, acrescenta Luís Pinheiro de Almeida, lembrando “programas de rádio e revistas, Salut Les Copains, e até um boneco, o Chouchou, onde o Zip-Zip se foi inspirar. Levavam a coisa a sério. Nós éramos tão-só o País do Fado, do Futebol e de Fátima. Triste, muito triste”, comenta. De resto, sobre estes dias que o novo livro evoca, lembra que “José António Barreiros, escritor, editor e advogado”, escreveu há pouco no Facebook que, nos anos 60, “cada dia era um novo mundo”. Luís confessa que raramente tem lido uma “descrição tão bela e tão assertiva de como se viveram os anos 60… lá fora!” Em Portugal, “em ditadura, até 25 de Abril de 1974, com uma guerra colonial em três frentes, não era bem assim. Não se nega que no País também alguma coisa tenha mudado (até havia bikinis e camisas às flores), mas não ao ponto de haver um “novo mundo todos os dias”. Para si “os anos 60 foram, irrevogavelmente, um mundo novo, em todas as vertentes: música, moda, economia, lazer, sociedade, política, cultura”. Em Portugal, acrescenta, “o ié-ié não foi uma realidade exclusiva, longe disso, mas foi um movimento bem sui generis. Não se imagina – nem hoje – que o ié-ié português tivesse sido promovido pelo Estado Novo a favor das Forças Armadas, já em guerra, as mesmas Forças Armadas que o viriam felizmente a derrubar 8 anos depois. Que incoerência!”. E, de facto, o célebre Concurso Ié-Ié, realizado no Cinema Monumental entre 1965 e 66 foi organizado pelo jornal O Século (a favor das forças que então lutavam no Ultramar) através do Movimento Nacional Feminino.

Contextualizando, vale a pena lembrar que se estava então em Portugal “no auge das guerras coloniais em três teatros e no desenvolvimento da crise estudantil de 1962 que já então contestava o regime e a guerra”. Foi por essa altura “que um jovem estudante da Faculdade de Direito de Lisboa, Pedro Cabrita, da Acção Académica (direita radical)”, surgiu com a ideia “de fazer um Concurso Ié-Ié com os conjuntos emergentes e outros, mobilizando para a iniciativa o Movimento Nacional Feminino, O Século, a RTP, a EN, as “forças vivas”. Pedro Cabrita, que viria a ser director da revista do MNF, justificou-se que com a realização do Concurso “descia a taxa de delinquência juvenil” e que enquanto a “rapaziada” se entregava às guitarras “desconhecia o preenchimento do tempo com outras coisas”, ou seja, a política”.

(continua)