A regra televisiva passou a ser: por cada espirro de um jogador da selecção nacional de futebol, é preciso anunciar o apocalipse e proclamar que o país está à beira de perder a independência... De tal modo que, por vezes, deparamos com as mais inusitadas "inspirações" literárias e cinematográficas — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (6 Junho), com o título 'O camião da selecção'.
1. Em 1977, Marguerite Duras fez um filme chamado Le Camion. Ela própria interpretava uma cineasta que lia um argumento na companhia de um actor (Gérard Depardieu). Era a história de uma mulher que apanhava boleia de um camião, história que Duras pontuava com imagens de um camião a atravessar diversas paisagens rurais, elaborando um exercício de delicado secretismo, e também de contido simbolismo, discutindo as limitações do visível para dar conta da complexidade das relações humanas. Dois anos mais tarde, no seu filme Salve-se Quem Puder, Jean-Luc Godard deixava uma bela homenagem a Duras, fazendo dizer a Jacques Dutronc: “(...) cada vez que virem passar um camião, pensem que é uma palavra de mulher que está a passar.”
2. A selecção portuguesa de futebol não viajou de autocarro para chegar ao aeroporto e rumar aos EUA. Nada disso. Se a vertigem do “zapping” não me enganou, nove-canais-nove transmitiram tal deslocação naquilo que foi, afinal, uma sentida homenagem a Marguerite Duras. Não vejo outra explicação, quanto mais não seja porque não me parece que o precioso tempo televisivo seja gasto de forma leviana a mandar equipas de reportagem a correr atrás de autocarros... Ainda assim, faltou um importante complemento informativo: lá dentro do autocarro (perdão, do camião), cada membro da comitiva lia, apaixonadamente, a edição original do livro (Éditions de Minuit, 1977) em que Duras publicou o admirável texto do seu filme.
3. Em várias apreciações do evento, ficou registado o modo exuberante como o “povo” celebrava os jogadores, em especial a multidão ululante de 20 ou 30 pessoas especadas em frente do Palácio de Belém... Nada que se compare com a insignificância dos 6 milhões e meio de eleitores que se abstiveram no dia 25 de Maio e que, salvo erro ou distracção da minha parte, as televisões, com iluminada pedagogia, não têm designado como “povo”. Aliás, corrijo os números: foram apenas 6.418.486 cidadãos que ficaram em casa a ver filmes sobre camiões.