domingo, maio 11, 2014

A sensualidade debaixo da pele

Não é todos os dias que deparamos com um filme que arrisca jogar em terrenos exteriores a qualquer modelo corrente de narrativa: Debaixo da Pele, de Jonathan Glazer, com Scarlett Johansson, é um desses filmes, além do mais capaz de nos devolver às delícias e perturbações do cinema como happening das salas escuras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Maio), com o título 'O cinema é uma coisa sensual'.

Vivemos tempos de consagração do mais absoluto determinismo. Um repórter dirige-se a um manifestante com um cravo vermelho e pergunta: “O que significa o seu cravo vermelho?...” Ou, então, apanha um jogador ofegante no final de um jogo: “O seu golo teve um significado especial, não teve?...” Isto tem um nome: sobre-significação, quer dizer, recalcamento das singularidades humanas e formatação do factor humano. Passámos a viver sob o jugo de uma ditadura linguística da significação: o “significado” de um espirro de Cristiano Ronaldo pode pôr em risco a identidade nacional...
Na sua elegante paixão pelo irracional, Debaixo da Pele não é, por isso, um filme para encaixar nos lugares-comuns do nosso tempo: uma extraterrestre que vem à terra para seduzir e, aparentemente, devorar homens?... O que é que isso “significa”?
Jonathan Glazer gosta destas narrativas em que, curiosamente, a figura feminina se confronta com as mais cândidas incongruências. Em Birth (2004), filmava Nicole Kidman, no papel de uma jovem viúva, face a uma rapaz de 10 anos que se apresentava como o seu marido reencarnado... Em Debaixo da Pele, Glazer convoca Scarlett Johansson para reinventar um dispositivo clássico de ficção científica — o frente a frente entre o humano e o não-humano —, encenando-o num espaço de paradoxal verdade orgânica, em tudo e por tudo ligado à riquíssima herança do realismo britânico.
Tal como Stanley Kubrick (como não pensar no seu 2001: Odisseia no Espaço?), Glazer procura um cinema em que o desafio intelectual vai a par da fruição sensorial. No limite, o cinema não serve para “reproduzir” o mundo, mas sim para o recriar como coisa puramente sensual. Cézanne não fez outra coisa... Mas que “significa” isso de evocar Cézanne a propósito de um filme?

PAUL CÉZANNE
La Route Tournante en Sous-bois
1873-75