quarta-feira, abril 02, 2014

Para acabar com o 25 de Abril

De que falamos quando falamos do 25 de Abril? Ou ainda, em termos televisivos: que imagens mostramos para dizermos que estamos a falar do 25 de Abril? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Março).

No nosso mundo de imagens televisivas, a aproximação de uma efeméride como os 40 anos do 25 de Abril relança a tradicional confusão entre os excessos de “informação” e a certeza de uma verdade universal e unívoca. Estão garantidos, assim, os mesmos estereótipos visuais (o largo do Carmo, etc., etc., etc.), pontuados pela mesma Grândola, Vila Morena reduzida a “jingle” publicitário, enquadrados pelos mesmos discursos de “resistência” que, em alturas destas, nos levam a pensar que somos 10 milhões de almas alegremente filiadas no Partido Comunista Português...
Não é fácil falar disto, quanto mais não seja porque a minha geração (digamos: os que, em 1974, saíam da adolescência ou se questionavam sobre a sua condição de jovens adultos) tem legítimas razões para fazer valer as suas memórias de um regime que destinava os corpos e as almas dos rapazes à crueza de uma terrível guerra colonial. Nem esta crónica é sobre a complexidade política dos momentos que então vivemos, entre a alegria mais pura e a mais perturbada perplexidade. O que me confunde é o facto de a minha tão frágil geração servir de caução televisiva para se continuar a fazer uma história do 25 de Abril em que não há gente viva, plural e contraditória, mas apenas marionetas banalmente “ideológicas”.
Para acabar com este 25 de Abril de poucas ideias e muitos spots televisivos, corrigir a romantização pueril do PCP é apenas um detalhe — afinal, o partido que desempenhou um papel fulcral no combate ao fascismo foi o mesmo que, nas atribulações do PREC, tentou controlar em absoluto o espaço televisivo. Será preciso, acima de tudo, que a minha geração, em vez de se iludir com uma uniformidade simbólica que nunca possuiu, tenha a coragem de não recalcar a felicidade que também existiu antes do 25 de Abril. Como? No sentido em que Talleyrand evocava os dramas da Revolução Francesa: “Quem não viveu no século XVIII antes da revolução não conhece a doçura de viver e não pode imaginar a felicidade que existe na vida.” São palavras que servem de epígrafe a esse belíssimo filme que é Antes da Revolução (1964), de Bernardo Bertolucci, condensando uma sensação de utopia e desencanto que raras vezes encontrou expressão no cinema português — o caso mais tocante, Perdido por Cem (1973), de António-Pedro Vasconcelos, nasce da circunstância admirável e “contraditória” de ser anterior ao 25 de Abril.
Há outra maneira de dizer isto: 40 anos depois, creio que uma prioridade cultural e política é a discussão do populismo televisivo e dos seus efeitos normativos nas mentes e comportamentos do povo. Entretanto, vamos gastando preciosas energias a tentar esclarecer se José Sócrates tem ou não o “contraditório” que se impõe... Por mim, fico feliz por Marcelo Rebelo de Sousa ter direito à doçura do seu viver televisivo, mas não foi apenas para isso que se fez o 25 de Abril.