sexta-feira, abril 04, 2014

No centenário de Duras (1/3)

4 de Abril de 2014: Marguerite Duras nasceu há exactamente um século, em Saigão, na então Indochina francesa. A sua obra literária, imensa e obsessiva, existe também como uma ante-câmara do seu trabalho cinematográfico — este texto foi publicado no suplemento "Qi", do Diário de Notícias (29 Março), com o título 'A mulher que viu tudo'.

Quando começamos a ver Hiroshima Meu Amor (1959), de Alain Resnais (1), as imagens revelam-nos fragmentos de dois corpos enlaçados. O facto de sobre eles cair uma cinza metódica — cujo brilho, a certa altura, parece redobrar — empresta-lhes uma ambivalência que, em boa verdade, irá atravessar todo o filme. A presença carnal do par está, assim, assombrada por um tempo outro, que não é mero passado arquivado; o efeito metafórico da cinza, a sua paradoxal explicitação dos efeitos da bomba atómica lançada sobre Hiroshima, está longe de se esgotar num mero sublinhado da memória, revelando antes a ausência de uma fronteira estanque entre o simbolismo do passado e os corpos do presente. Pressentimos, por isso, a duplicidade trágica de qualquer calendário histórico ou afectivo. Mais do que isso: não é possível olhar o presente sem sentirmos que o passado, convocado pelo nosso desejo de ver e saber, pode ser tragicamente inacessível, porventura impensável.
Essa perturbação encontra-se, por assim dizer, confirmada pelas lendárias primeiras palavras do filme, ditas por Eiji Okada, numa altura em que os corpos deixaram de receber o suave martelar da cinza, parecendo devolvidos à linearidade física de um puro presente. Diz ele: “Tu não viste nada em Hiroshima. Nada.”
São palavras escritas por Marguerite Duras, autora do argumento de Hiroshima Meu Amor (“argumento e diálogos”, para citarmos a respectiva identificação no genérico). Entraram para a história do cinema — com tudo o que essa história envolve de cumplicidade com as convulsões do mito — como condensação radical de um tema nuclear dos universos criativos de Resnais e Duras. A saber: o labor da memória como um assombramento que oscila entre um objecto por revelar (“Hiroshima”) e a sua perdição (“nada”).
Mas a história do cinema, dos homens e das mulheres, reais ou imaginários, que circulam pelos filmes é também feita dos silêncios que, por pudor ou ignorância, a vão pontuando. E quando se cita a fala premonitória de Okada, quase sempre se omite o contraponto que lhe é dado, de imediato, pela voz cristalina e agreste de Emmanuelle Riva: “Eu vi tudo. Tudo.” Começa, então, uma enumeração de acontecimentos do olhar que faz questão em lembrar que a própria realidade vivida se apresenta como uma exigência ética de ver: “Vi o hospital, tenho a certeza. O hospital existe em Hiroshima. Como poderia ter evitado vê-lo?”
Dizer que se esboça aqui uma dicotomia (narrativa, simbólica e sexual) entre personagens masculinas e femininas é inevitavelmente sugestivo: o homem surge como aquele que aponta a cegueira cognitiva da mulher; a mulher como a entidade que reage a tal censura, fazendo valer a sua capacidade de ver, ou melhor, de não desviar o olhar. Em todo o caso, não será muito adequado definir Duras ou Resnais como meros criadores de variações estéticas, mais ou menos feministas, sobre a afirmação da mulher num mundo conduzido por valores masculinos. Claro que o eco, difuso e transfigurado, de tais variações perpassa por estes universos, mas não devemos entendê-lo como a afirmação de uma “temática” susceptível de ser identificada como marca dos respectivos autores.
Quando Okada diz “tu não viste nada”, o que a escrita proclama é também a impossibilidade inerente ao cinema que dela se apropria. Como se o cinema, também máquina de apropriação do mundo e das suas aparências, exercício de realismo obrigatório e sempre incompleto, não pudesse deixar de expor a sua desarmada e desarmante incongruência ontológica.
Evocando a sua personagem emblemática de Lol V. Stein — revelada no livro Le Ravissement de Lol V. Stein (1964) —, Duras refere-se, justamente, a tal jogo de espelhos no capítulo “O Bloco Negro” do livro A Vida Material (trad. Tereza Coelho, Difel, 1987): “Escrever não é contar histórias. É o contrário de contar histórias. É contar tudo ao mesmo tempo. É contar uma história e a ausência dessa história. É contar uma história que passa pela sua própria ausência.”
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(1) ALAIN RESNAIS (1922-2014): recentemente falecido, a sua obra, embora simbolicamente ligada à Nova Vaga francesa, possui uma dimensão experimental que lhe é anterior. Filmou Auschwitz em Noite e Nevoeiro (1955). O Último Ano em Marienbad (1961) pode simbolizar a dimensão experimental das suas narrativas.