O desenvolvimento da série The Walking Dead tem acentuado as suas muitas e fascinantes ressonâncias simbólicas: os zombies são mesmo os mais perversos produtores de símbolos — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (28 Fevereiro), com o título 'Sonhar com zombies'.
À medida que a série The Walking Dead (Fox) se aproxima do final da quarta temporada, temos assistido a mais uma curiosa viragem de acontecimentos e cenários. Assim, depois da morte da personagem do “Governador” (David Morrissey), do abandono da prisão e da dispersão da comunidade liderada por Rick (Andrew Lincoln), a história fragmentou-se em várias linhas paralelas, cada uma delas concentrada num dos grupos de sobreviventes.
Como consequência principal de tal dinâmica, desenvolveu-se uma elaborada proliferação de cenários, desde as casas abandonadas, usadas pelos sobreviventes para períodos mais ou menos prolongados de descanso, até aos espaços naturais rasgados por degradadas vias de alcatrão. Por um lado, as casas parecem reactivar todo um imaginário familiar, mais ou menos rural, que não é estranho a memórias cinéfilas de westerns, melodramas e até filmes musicais; por outro lado, as florestas e os seus elementos — incluindo a impressionante quantidade de folhas secas que recobre todas as estradas — são testemunhos de uma Natureza que, definitivamente, perdeu qualquer sinal de uma pureza imaculada e redentora.
Escusado será dizer que, no plano dramático, tudo isto funciona a partir da contínua ameaça dos zombies, na sua errância obrigando os humanos a uma permanente reinvenção de estratégias de sobrevivência. Ao mesmo tempo, reforça uma ideia que, desde a primeira temporada, se tem vindo a consolidar: The Walking Dead é menos uma parábola maniqueísta sobre a luta do Bem contra o Mal, e mais uma deambulação pelas feridas contemporâneas do “American Dream”. O cepticismo em relação às formas de poder político, a fragilização do universo familiar e a súbita inquietação que passou a emanar dos elementos naturais são alguns dos seus elementos fulcrais.
Em boa verdade, semelhante teia temática está instalada no cinema americano desde que, em 1972, John Boorman dirigiu o admirável Deliverance (Fim de Semana Alucinante). Os zombies televisivos foram mais lentos, mas importa saudá-los na sua notável contundência.