quinta-feira, março 06, 2014

Novas edições:
St. Vincent, St. Vincent

St. Vincent
“St. Vincent”
Caroline International
5 / 5 

Há habitualmente dois tipos de ocasiões em que vemos os músicos a dar aos discos o seu próprio nome. O mais frequente corresponde aos momentos de lançamento de um álbum de estreia. Mas não é invulgar vermos o mesmo suceder quando há um desejo de recomeço expresso no disco em questão. E ao chamar ao seu quarto álbum de estúdio em nome próprio St. Vincent, a cantaurora norte-americana Annie Clarke sugere-nos assim que há ali um renascimento a termos em conta.
Aos 31 anos, esta natural de Tulsa (no Okhlahoma) tem um currículo já extenso. Depois de ter feito teatro e tocado na banda de jazz da escola secundária e de ter mais tarde frequentado o Berklee College of Music, integrou os Polyphonic Spree, colaborou com a orquestra de 100 guitarras de Glenn Branca e juntou-se aos músicos que acompanharam Sufjan Stevens na sua digressão de 2006. Só por essa altura decidiu avançar com um projeto em nome próprio ao qual chamou St. Vincent, nome inspirado pelo Saint Vincent’s Catholic Medical Center, o hospital em Manhattan onde o poeta Dylan Thomas morreu em 1953.
Tinha já editado, entre amigos, um EP como Annie Clark em 2003 (chamou-lhe Ratsliveonnoevilstar e gravou-o ainda nos tempos em que estudava no Berklee College of Music, tendo então contado com a colaboração dos seus colegas). Como St. Vincent estreou-se com um outro EP em 2006 (Paris is Burning), ao qual fez seguir os progressivamente mais aclamados álbuns Marry Me (2007), Actor (2009) e Strange Mercy (2011). A estes discos em nome próprio juntou depois Love This Giant, álbum de 2012 criado em parceria com David Byrne, lançado não muito depois de revelado um dueto seu com Andrew Bird no tema Lusitania, pelo seu currículo contando-se ainda, entre outros episódios, a parceria em Roslyn, com Bon Iver.
Contando com vários colaboradores, entre os quais Mike Grason (um pianista veterano, com extensa relação com a obra de David Bowie), o álbum de estreia colocava uma promessa em cena e dava desde logo sinais de um talento dotado de uma visão musical ímpar e demarcada das tendências e dos sabores do momento. Com parte do alinhamento feito de canções compostas quando ainda não tinha chegado aos 20 anos, Marry Me era habitado por sonhos, levantando talvez mais ideias que a capacidade de as arrumar. Dois anos depois, Actor nascia de uma intensa relação com o cinema, revelando canções de formas mais claras (a maior visibilidade de Actor Out of Work será uma das consequências dessa evolução). O processo de gradual maturação continua bem evidente em Strange Mercy, que juntou a aclamação de quem faz opinião sobre música a quem compra discos. E conheceu novo espaço de desafio formal no álbum com Byrne no qual ambos valorizaram a presença de uma intensa secção de metais
Editado um ano depois de ter sido distinguida com o American Ingenuity Award (anualmente atribuido pela Smithsonian), na categoria de Artes Performativas, St. Vincent é, mesmo herdeiro de elementos dos álbuns anteriores, um disco diferente de todos estes, mantendo firme a presença da voz e de uma linguagem autoral que há já algum tempo definiu uma região muito própria para a afirmação da sua identidade. Há pontuais ecos de heranças new wave (Regret) ou do trabalho com metais ensaiado ao lado de Byrne (Digital Witness). De novo há uma mais luminosa evidência de uma atitude pop e, sobretudo, uma mais expressiva presença das electrónicas que, em conjunto com as guitarras e demais instrumentos, servem canções de escrita cuidada, todas elas magnificamente interpretadas. São canções animadas por vivências pessoais (a faixa de abertura Rattlesnake traduz memórias verídicas de um serão no deserto texano no qual ela mesma teve de fugir de uma obra cascavel) e por palavras pessoais como se escuta no profundamente romântico Prince Johnny ou também em I Prefer Your Love, que dedica à sua mãe, recordando na letra um tempo em que esta esteve doente, traduzindo o receio de um eventual cenário de perda.
Annie descreveu já este disco, num press release de dezembro de 2013 citado pelo site Pitchfork, como um álbum festivo para tocar num funeral. Gravado no Texas e produzido por John Congleton, St. Vincent é um disco no qual, como afirmou à revista Uncut, a cantora se sentiu mais ela mesma, referindo também como tinha lido numa biografia de Miles Davis, que soar a si mesmo era um desafio maior para um músico.
Se soa ou não a sim mesma só ela mesma o saberá. Mas a verdade é que, depois de um trio de promissores álbuns a solo, St. Vincent é não só o seu melhor disco (editado até ao momento) como nos propõe um um dos mais luminosos, vibrantes e viçosos álbuns feitos de canções pop/rock dos últimos tempos.

PS. Este texto foi originalmente publicado na edição de 2 de março do DN