Bela revisitação do modelo clássico do "filme de guerra": com Os Caçadores de Tesouros, George Clooney constrói uma parábola de amor pela arte — estes dois textos foram publicados no Diário de Notícias (19 Fevereiro).
George Clooney à procura da arte perdida — Não se pode dizer que o chamado “filme de guerra”, em particular sobre a Segunda Guerra Mundial, seja um trunfo regular da actual produção americana. Bem pelo contrário: mesmo se, ciclicamente, surgem obras emblemáticas a retomar a tradição do género — desde o realismo de O Resgate do Soldado Ryan (1998), de Steven Spielberg, ao delírio barroco de Sacanas sem Lei (2009), de Quentin Tarantino —, o certo é que, ao fazer Os Caçadores de Tesouros, George Clooney aposta num registo actualmente pouco comum. E tanto mais quanto este seu quinto título como realizador escolhe um tema quase inédito: a acção de um grupo de oficiais das tropas aliadas com a missão de recuperar as obras de arte (pinturas, esculturas, etc.) de que os nazis se foram apropriando visando a construção daquilo que seria um gigantesco “Museu do Führer”.
O que está em jogo é, afinal, a preservação de uma monumental herança artística — o título original, duplicando a designação do livro de Robert M. Edsel que lhe serve de inspiração, é The Monuments Men. Mais do que isso: tudo depende de uma opção política de fundo. Não por acaso, o filme abre com uma sequência carregada de simbolismo: o tenente Frank Stokes (interpretado pelo próprio Clooney) explica ao Presidente Roosevelt (Michael Dalton) que não se trata apenas de recuperar algumas obras-primas; trata-se, isso sim, de combater todo um processo de apropriação, por vezes de destruição (daquilo a que os nazis chamaram “arte degenerada”), que põe em causa os valores mais vitais da criação e do conhecimento humanos. Para sustentar a sua estratégia de acção, Stokes apoia-se, em particular, no exemplo de um admirável painel do pintor flamengo Jan van Eyck (1390-1441), roubado de uma igreja da cidade belga de Ghent.
Estreado na recente edição do Festival de Berlim, Os Caçadores de Tesouros foi rodado na Alemanha, primeiro nos lendários estúdios de Babelsberg, em Potsdam, depois na zona montanhosa de Harz, da região de Berlim-Brandenburgo, tendo sido concluído em Rye, Sussex, no leste de Inglaterra. Com argumento escrito pelo próprio Clooney, com a colaboração de Grant Heslov (seu sócio da companhia de produção Smokehouse Pictures), o filme constrói-se, em grande parte, através de episódios organizados em torno de cada um dos oficiais que integram o grupo comandado por Stokes.
Daí a importância de um elenco em que os actores americanos — Matt Damon, Bill Murray ou John Goodman — contracenam com europeus como Jean Dujardin (o francês que protagonizava O Artista) ou Hugh Bonneville (inglês popularizado pela série televisiva Downton Abbey); a única nota feminina provém da australiana Cate Blanchett, assumindo a personagem de uma francesa que, trabalhando no gabinete de um oficial alemão durante a ocupação de Paris, foi registando os desvios de obras de arte. Na cena final do filme, algumas décadas depois do fim da guerra, a personagem de Stokes é interpretada por Nick Clooney, figura do jornalismo e da televisão dos EUA, pai de George Clooney.
A herança do cinema liberal — Por mais desconcertante que isso possa parecer, depois do desaparecimento de cineastas como Alan J. Pakula (1928-1998) ou Sydney Pollack (1934-2008), George Clooney transformou-se no mais legítimo herdeiro da tradição liberal de Hollywood. Convém não a confundir com uma eventual proximidade dos democratas americanos — o seu filme anterior como actor/realizador, Nos Idos de Março (2011), um dos últimos de Philip Seymour Hoffman, era mesmo particularmente cáustico em relação a algumas manobras dos respectivos bastidores. Convém, sobretudo, não reduzir tal tradição a qualquer aparato mais ou menos panfletário.
O herói liberal enraíza-se sempre num contexto de grande fragilidade institucional e, em termos de espectáculo, não depende da agitação de efeitos especiais — crente no valor insubstituível do indivíduo, conduzido por uma inabalável convicção democrática (irredutível a qualquer partidarismo), ele abraça as causas mais radicais, por vezes politicamente menos óbvias.
Exemplo? Salvar os milhares de obras de arte roubadas pelos nazis. Em Os Caçadores de Tesouros, é isso que faz mover a personagem de Frank Stokes (Clooney), emprestando-lhe a dimensão insólita de um militar “deslocado”, apostado em recuperar obras de Rembrandt, Miguel Ângelo ou Picasso no mesmo momento em que o mundo deparava com o horror do Holocausto.
Daí o romanesco fascinante, por vezes de subtil comoção, de um filme atravessado por uma singular erotização da relação dos seres humanos com a criação artística: no limite, tal relação é apenas uma variante da intimidade dos próprios humanos. Veja-se, em particular, a cena intensamente sexual, mas sem sexo, protagonizada por Cate Blanchett e Matt Damon — o olhar liberal é tanto mais político quanto se exprime no feminino.