sexta-feira, março 14, 2014

A história de 'West End Girls' (4)

Continuamos a publicação (em episódios) de um longo artigo sobre a canção West End Girls, que há 30 anos assinalou o inicio da sua atividade discográfica. O texto foi originalmente publicado no suplemento Qi, do DN, som o título 'Retrato Urbano na forma de uma Canção' 

A primeira vez que tiveram de pensar como gostariam de se mostrar publicamente aconteceu por ocasião de uma participação num programa de televisão na Bélgica em 1984. Tinham feito uma primeira sessão fotográfica, usando roupa desportiva. Ambos tinham comprado muita roupa depois do regresso da viagem a Nova Iorque e pensaram que essa imagem acentuaria uma ligação à cultura hip hop. Quando se apresentaram na Bélgica levavam roupa informal e bonés da Boy. Mas não imaginavam que iam fazer uma performance. “Não tínhamos nada pensado”, recorda Neil em Catalogue. Essa acabaria por ser a primeira performance publica do grupo. Ao som de West End Girls, era uma atuação para uma estação de rádio – em play back! – mas com público.

A capa que acompanhou a segunda edição em single de West End Girls, em outubro de 1985, marcou o inicio de um processo de construção de uma imagem gráfica para os Pet Shop Boys. Conforme sublinham Philip Hoare e Chris Heath em Catalogue, publicações atentas aos novos rumos da cultura jovem de meados dos anos 80, como a The Face, i-D e Blitz tinham feito do design um aspeto essencial do marketing e da promoção ligados à música. “Os statements sofisticados na capa da reedição de West End Girls foram assim a chave para a construção da imagem do grupo” (9).

A capa foi criada pela XL Design, que havia entre outras assinado as capas dos discos dos Frankie Goes To Hollywood. Chris Lowe, que por essa altura estava já longe do futuro que em tempos imaginara na arquitetura, também contribuiu para a criação da capa da versão máxi-single. O design era marcado pela estética estruturalista que tinha conhecido importante referência em discos dos Scritti Politti. Era uma opção alternativa, mas apelativa. Gostavam da “ideia de parecer uma marca ou um frasco de perfume”, explica Neil Tennant em Catalogue, definindo um caminho que conheceria a sua expressão maior anos mais tarde no teledisco que acompanhou o tema Flamboyant, no qual os dois músicos criam imagens de anúncios pensados ao estilo da publicidade televisiva japonesa.

A capa de um máxi com remisturas, surgido em janeiro de 1986, marcou o inicio do relacionamento dos Pet Shop Boys com Mark Farrow, que por essa altura se havia juntado à equipa da XL Design. Descontente com a presença de três tipos de letras num mesmo espaço, Mark, que tinha “a ética da [editora] Factory na mente” (10), afastou-as da nova capa e deixou apenas os blocos de cores e o fundo. Foram lançados vários máxis em vários territórios, e os jogos de arrumação destes mesmos elementos permitiram criar uma série de variações. O trabalho com as cores primárias nesta série de maxi-singles assinalou uma referência ao trabalho do designer italiano Ettore Sottass.

Mas além do aprumo e das ideias dos designers gráficos, a grande mudança que surge nas capas do discos dos Pet Shop Boys após esta segunda vida de West End Girls deve muito à imagem do grupo nas fotografias que ocasionalmente desde então usam. Mal se tinham juntado à companhia de management de Tom Watkins, este recomenda-lhes o recurso a um stylist. Com o novo management investiram no guarda-roupa, desde logo criando as diferenças evidentes entre os dois músicos (com Chris, já a perder cabelo, a optar por bonés como imagem de marca). As sessões fotográficas de outubro de 1984 por Eric Watson geram a imagem usada na capa do single. Mas é no teledisco, realizado por Eric Watson e Andy Morahan, que surge pela primeira vez a alma do look que se tornaria referência na obra visual posterior do grupo. Neil de gabardina longa, fato mais clássico e gravata, Chris de vestuário mais informal (mas aqui curiosamente de cabeça destapada).

“Não nos queríamos parecer com uma banda pop feliz e sorridente que faz sorrisos para a câmara. Não creio que estivesse na nossa natureza fazer isso” explica Chris em Catalogue. “Queríamos que as fotografias representassem o que sentíamos na altura em que foram tiradas em vez de serem algo que nos fazia saltar para dentro de personagens”, acrescenta. Neil, por sua vez, admite que essa definição de um caminho visual podia ter a ver com a sua idade na época: “Quando fizemos aquelas primeiras fotografias eu tinha 30 anos. Por essa altura o George Michael teria uns 21 ou 22. Eu tinha conhecido alguns desses outros grupos porque os tinha entrevistado e estava consciente de que era mais velho que eles mas que, mesmo assim, iriamos surgir e seguir caminho com eles. “ Neil (11). De resto, alguns meses depois de terem conquistado um patamar de sucesso ocorreu aos dois músicos que uma das razões pelas quais as pessoas gostavam deles “era porque gostavam da aparência”que tinham, contam em Literally.

O teledisco foi rodado em Londres, o que representa uma expressão visual direta do cenário que a letra define. Vemos Neil e Chris entre as ruas da cidade e imagens de figuras anónimas que ali passam, cortadas com planos de trânsito. Vemos um autocarro, montras de lojas, o Big Ben captado de uma vista aérea. Integralmente rodado num só dia, o teledisco ganhou a forma de um “passeio” por Londres. “O Andy e eu saímos cedo, numa manhã, aí pelas seis horas, com câmaras vídeo 8 e andámos por lugares como Aldgate e outros assim, filmando”, recorda Eric Watson em Calalogue. Chris, como explica o fotógrafo e realizador, não queria surgir a tocar num teclado e assim surgiu a ideia de mostrar um deles a cantar e um outro a não fazer nada, “apenas olhando”. A ideia, era algo “creepy, mas ao mesmo tempo charmosa” e só mais tarde se aperceberam que tinham criado uma ideia de “produto”. O vídeo onde, como se descreve em Calalogue, o grupo surge com uma imagem “urbana, existencialista, um par observador e de certa forma afastado da ação” seria assim uma peça central para a definição dos caminhos que a imagem do grupo passaria a tomar, com sucessão imediata (e em sintonia) em Love Comes Quickly, que se seguiu em fevereiro de 1986.

A relação dos Pet Shop Boys com a cidade de Londres, que tem em West End Girls o seu paradigma referencial, conheceu depois episódios de continuidade nas imagens interiores da capa de Please (1986) e nos telediscos de canções como Rent (Dreek Jarman, 1987), A Red Letter Day (Howard Greenhalgh, 1997), Somewhere (Annier Griffin, 1997), Home and Dry (Wolfgang Thielmans, 2002) (12) ou London (Martin Parr, 2002). Vale a pena acrescentar que, numa ocasião, a videografia dos Pet Shop Boys passou por Lisboa, com imagens da Ponte Vasco da Gama, Parque das Nações e Estação do Oriente a surgir no teledisco de Miracles (Howard Greenhalgh, 2003).

A mesma inteligência lírica que definia os temas e as palavras com que as canções os abordavam e a visão pop moderna e atenta à constante reinvenção das formas (sob atenção maior sobre os espaços da chamada música de dança), conhecia assim idêntica vontade de reflexão no modo de pensar a imagem. “Era uma forma honesta de fazer parecer” . Temos de nos mostrar publicamente e apresentar algo. Sempre me senti mais confortável e, de certa forma, mais confiante, se visto uma roupa e maquilhagem”, explica Neil em Catalogue.

West End Girls pulverizou em semanas o que haviam sido os ecos e discreto impacte de primeiros a gravar maquetes e os três tiros ao lado dos três primeiros singles. Please, o álbum de estreia, mostrou que havia neles mais que apenas fazedores de um single de sucesso. Actually, um ano depois, confirmava o lançamento mais profundo de uma carreira que, mesmo contando com o single como veículo primordial em muitas ocasiões, gerou entretanto álbuns marcantes como Behaviour (1990), Very (1992), Yes (2009), Elysium (2012) ou o maus recente Electric (2013). Além dos álbuns e singles feitos de canções pop sua obra inclui já experiências de teatro musical, uma banda sonora para um filme mudo (em concreto o Couraçado Potemkin de Sergei Eisenstein) ou um score para bailado. Compuseram canções para nomes como Lisa Minelli, Dusty Springfield, Robbie Williams ou Patsy Kensit (via Eight Wonder). Remisturaram e colaboraram com David Bowie, Blur ou Sam Taylor Wood. Fizeram um filme (o algo ignorado It Couldn’t Happen Here, realizado por Jack Bond em 1987 e até hoje ainda sem edição em DVD). E são, três décadas depois do seu primeiro single, referência maior da cultura pop. Representam um raro exemplo de como a popularidade não traduz necessariamente uma rendição a valores que não os de uma demanda autoral. Neil explicou, numa altura em que o grupo vivia os seus momentos de maior sucesso, que “os Pet Shop Boys estão a tentar chegar ao grande mercado mas sem apagar o que antes tinham feito nem deixar-se vender”. Acrescentou que partilha “aquela ideia algo anos 60 de que há quem se venda” e não lhe parece que os Pet Shop Boys o tenham feito para chegar onde chegaram: “Não tentamos nunca diluir as coisas para que se tornassem mais palpáveis às pessoas”, diz Neil em Literally. Chamaram-lhes uma vez “os Smiths que podemos dançar”. Convenhamos que não é uma má descrição.

(9) in Pet Shop Boys: Catalogue, de Philip Hoare e Chris Heath (Thames & Hudson, 2006), pág. 28
(10) idem, pág. 31
(11) idem, pág 32
(12) As imagens de ratinhos entre carris foram captadas numa estação de metro londrina.