Neneh Cherry
“Blank Project”
Smalltown Supersound
4 / 5
Na nossa relação com a música (departamento da memória) não há nada pior que aquela forma preguiçosa de evocar o que o tempo antes mostrou repetindo à exaustão sempre a mesma canção, criando uma noção de dieta da realidade que reduz as obras não apenas aos momentos de maior sucesso como, depois, sempre aos mesmos episódios. Como se outros não houvesse... Reduzir Neneh Cherry aos “sete segundos” que cantou, por alguns minutos, ao lado de Youssou N'Dour nos anos 90 é um belo exemplo de como semelhante lógica de acesso à memória gera uma visão bem errada de quem temos pela nossa frente. E ao regressar aos discos em nome próprio após um hiato de 18 anos, essa canção que conheceu projeção global deve ser um dos cantos das obra da cantora ao qual este reencontro não prestou atenção. Longe de ser um álbum de síntese de etapas anteriores ou mesmo um retomar de pontas (eventualmente) soltas, Blank Project é um disco que procura um recomeço num patamar onde a voz, a firmeza de uma identidade política e uma segurança na capacidade de falar do “eu” se entendem essencialmente com eletrónicas, sob ecos distantes de relacionamentos de outrora com o hip hop, a pop (escute-se a preciosa colaboração com Robyn em Out of the Black) e até mesmo os espaços do pós-punk pelos quais se aventurou em percursos ainda mais remotos. Mais que procurar ajustes de contas ou entendimentos com o passado, o regresso aos discos de Neneh Cherry é coisa com sabor ao seu aqui e agora. Produzido por Kieran Hebden (do projeto Four Tet), o disco assenta as canções sobre uma rede minimalista de acontecimentos sonoros essencialmente feitos de relacionamentos com estruturas rítmicas e sonoridades eletrónicas (há exceções, como a incursão por guitarras de alma pós-punk em Weightless). Distante também da experiência jazzística do mais recente The Cherry Thing (de 2012), mas aceitando ensinamentos colhidos nessa experiência, o novo disco representa o mais interessante momento da obra da cantora desde o histórico Raw Like Sushi, de 1988, onde então a ouvíamos a cantar Buffalo Stance ou Manchild. Este Blank Project pode parecer uma tela de alguém que procura novas tinhas e, com elas, novas formas. Lembrando um pouco as demandas para voz e eletrónicas de uma Nicolette ou Dana Bryant nos noventas, este é, talvez antes mesmo de uma meta, um bom ensaio de caminhos, sendo certo que o faz com palavras seguras e ideias firmes (explorando temáticas de identidade de género e, sobretudo, uma visão do feminino que não é decretada por uma agenda masculina). Este é um regresso que pede atenção e exige algum esforço na audição. Mas que se revela o primeiro grande reencontro de 2014. Seja bem regressada, Neneh Cherry.