domingo, janeiro 12, 2014

O luto por Eusébio

PAULA REGO
Pietà
2002
A morte de Eusébio da Silva Ferreira tem sido também um evento mediático e, sobretudo, televisivo. Compreende-se que assim aconteça com uma figura em que a história se cruza com a mitologia. Resta saber como é que isso acontece, nomeadamente no espaço específico da televisão — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (10 Janeiro).

Tal como muita gente cuja infância ou adolescência passaram pela década de 60, sou dos que têm uma recordação forte das glórias futebolísticas de Eusébio, em particular da campanha da selecção portuguesa no Mundial de 1966. Recuso, por isso, entrar nessa triste especulação que algumas vozes tentaram favorecer no espaço televisivo, insinuando que a memória de alguns pode ser mais genuína, porventura mais legítima, que a memória de outros.
Gostaria apenas de deixar algumas notas sobre algo que nunca é fácil: fazer o luto pela perda de alguém que, por alguma razão, deixa marcas na nossa história. Perante a avalancha televisiva que a morte de Eusébio suscitou (repetindo fenómenos anteriores também em torno do desaparecimento de figuras populares), temo que tenhamos assistido à obscena destruição de qualquer hipótese de luto.
Não quero fazer juízos de valor generalistas (e, por certo, abusivos) sobre as pessoas que tiveram por missão relatar, noticiar ou comentar o evento. Mas há qualquer coisa de gratuito e asfixiante quando começamos a compreender que a proliferação da palavra “emoção” já não corresponde a nenhum critério jornalístico, decorrendo apenas desse infantilismo doentio que confunde televisão com a permanente produção de clímaxes “informativos”.
Na prática, destrói-se de forma totalmente irresponsável um valor cultural mais que estimável e que, por mim, julgava enraizado nos ancestrais valores católicos da nossa sociedade. A saber: a prática do luto como uma atitude de contenção em que o respeito por aqueles que morrem se exprime, não pelo ruído ou pela ostentação, mas através do delicado e sentido recato que a sua memória nos suscita.
Transformando o luto num compulsivo circo colectivo, a ideologia televisiva do excesso menospreza as singularidades individuais e, por fim, os próprios laços que podem definir uma comunidade. E quem resiste a tal barulheira, corre sempre o risco de ser interpelado por algum repórter histérico: “Então, não sentiu nada?” Senti, sim, mas precisamente porque fui eu a sentir, faça favor de me deixar em paz.