quarta-feira, janeiro 15, 2014

Memórias de "Garganta Funda" (1/2)

Linda Lovelace (1949-2002)
A história cultural de Garganta Funda é inseparável dos dramas íntimos da sua protagonista, Linda Lovelace: o filme de Rob Epstein e Jeffrey Friedman consegue mostrar o seu singular cruzamento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Janeiro), com o título 'A biografia intimista de um símbolo da pornografia'.

Já se passaram mais de quarenta anos: Garganta Funda (1972), de Gerard Damiano, é um daqueles títulos que, depois de muitas polémicas, foi reconhecido como fenómeno sociológico, com o tempo acabando por se transformar em referência clássica. Isto sem esquecer que a noção de classicismo aplicada a um filme pornográfico não será, por certo, um conceito linear, muito menos universal.
Acontece que não estamos a falar de factos abstractos, mas de acontecimentos que envolvem sempre o factor humano. Entenda-se: protagonizados, não por máquinas, mas por seres humanos. Terá sido essa uma das razões que levou os cineastas Rob Epstein e Jeffrey Friedman a querer fazer um filme sobre Linda Lovelace (1949-2002), a protagonista de Garganta Funda. O resultado chama-se Lovelace (estreia hoje) e possui a dimensão de uma biografia intimista que, metodicamente, aposta em registar os sintomas de uma época de muitas convulsões sociais e culturais.
Nesta perspectiva, talvez se possa considerar que Lovelace desenvolve, agora no plano psicológico, toda uma desmontagem crítica dos anos 70 que já estava no documentário Dentro de Garganta Funda (2005), de Fenton Bailey e Randy Barbato. Tudo se passa numa América a experimentar as euforias e, sobretudo, as ressacas da década de 60 e das respectivas ideologias libertárias. Mais do que isso: os EUA viviam os dramas crescentes do envolvimento militar no Vietname, com a proliferação de muitas formas de contestação da presidência de Richard Nixon.
De qualquer modo, é a personagem de Linda Lovelace, interpretada por Amanda Seyfried, que mobiliza o interesse de Epstein e Friedman. E não apenas pelas singularidades das cenas de sexo oral que fizeram a sua fama. Para os dois realizadores, a sua história pode ser lida a partir de um contraste (ou uma complementaridade?) entre os escândalos que Garganta Funda desencadeou e o profundo conservadorismo do meio social de onde a própria Linda Susan Boreman provinha (o apelido de Lovelace foi adoptado para o filme).
Pode dizer-se, por isso, que esta é a história de uma ambígua libertação. Por um lado, num tempo de acelerada transformação dos modos de vida da juventude, Linda anseia libertar-se da austeridade moral imposta pela mãe (Sharon Stone), com a cumplicidade silenciosa do pai (Robert Patrick); por outro lado, ao enamorar-se de Chuck Traynor (Peter Sarsgaard), ela vai aceder a um mundo em que, sob aparências mais ou menos liberais, as mulheres são reduzidas à condição de instrumentos do poder masculino.
A ironia cruel da história de Linda Lovelace provém dessa contradição simbólica: ela que passou nos ecrãs de todo o mundo como heroína da “libertação sexual” (em Portugal, o filme foi lançado pouco depois do 25 de Abril de 1974), acabou por viver grande parte da sua vida a lutar por se libertar da herança de Garganta Funda. O filme de Epstein e Friedman faz o retrato íntimo desse processo dramático que, em 1980, a levou a escrever na sua autobiografia (Ordeal) esta frase: “Quem for ver ‘Garganta Funda” está, de facto, a assistir à minha violação”.