I - Duas breves considerações prévias:
- sou dos que pensam que a abordagem social e política da homossexualidade em termos "militantes" ou "panfletários" está inevitavelmente condenada a simplificar a complexidade das questões envolvidas, menosprezando, em última instância, a experiência irredutível de cada ser humano;
- não imagino (muito menos pretendo denunciar) o Correio da Manhã como um perigoso antro de homofobia.
II - Dito isto, há qualquer coisa de violentamente obsceno no facto de um jornal fazer a sua manchete com o título 'Polícias espancados em discoteca gay'. Porquê? Porque os referidos polícias foram espancados por alguém que não seria homossexual? Nada disso. Uma vez mais, importa pensar as práticas jornalísticas para além de generalizações grosseiras e, em última instância, capazes de mobilizar e reforçar os preconceitos mais primitivos. Assim como seria injustificável que o Correio da Manhã fosse definido por uma qualquer generalização "sexuada" (do género: 'um jornal que continua a denunciar os crimes dos gays...'), assim também importa dizer que não há "objectividades" inocentes. Em boa verdade, a questão é essa: quando o jornalismo se refugia no carácter supostamente intocável daquilo que se diz "objectivo", nesse momento esse mesmo jornalismo corre o risco de esquecer que noticiar — e, de um modo geral, escrever — envolve sempre a elaboração de uma visão do mundo.
III - Podemos descrever esta tragédia da irresponsabilização pela "objectividade" através de uma hipótese absurda mas, nos termos em que o Correio da Manhã se coloca, totalmente legítima. Assim, que condições necessitariam de estar reunidas para que o jornal titulasse: 'Polícias espancados em discoteca hetero'?
Nota: Tudo isto, entenda-se, sem sequer entrarmos na discussão jornalística e filosófica, numa palavra, política, do facto de se escolher uma manchete com esta. Assim, por exemplo, enquanto o mundo está a viver o luto de Nelson Mandela ou em Portugal os temas e traumas das esquerdas são relançados através da acção de Mário Soares... há um jornal português que se mostra preocupado com a identidade "sexual" dos agressores de polícias numa discoteca. O que deixa uma pergunta mais: qual o lugar da sexualidade (homo, hetero ou sem rótulo definido) no imaginário jornalístico?