sábado, dezembro 07, 2013

O futebol como paisagem ideológica

As proezas dos "pequenos" do futebol são regularmente recalcadas pelos discursos televisivos dominantes: a ideologia dos "grandes" considera-os desprezíveis — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (6 Dezembro), com o título 'Da ideologia futebolística'.

1. Desde a época de 1970/71, portanto há 43 anos, a Académica de Coimbra não ganhava ao F. C. Porto em jogos disputados em Coimbra para a competição máxima do futebol português. Consegui-o de novo no passado sábado, 30 de Novembro.

2. Esperei, confesso, que as televisões assinalassem o facto, ao menos aplicando o seu gosto corrente pelas memórias e efemérides. Teria até sido simpático se recordassem a equipa da Académica que, a 15 de Novembro de 1970, derrotou o Porto por 3-2, com jogadores tão notáveis como o capitão Gervásio ou os irmãos Vítor e Mário Campos.

3. Nada disso. Rapidamente o assunto foi submetido a uma grelha única de leitura: não se tratava de abordar a proeza dos estudantes, mas sim o descalabro dos portistas... No imaginário do futebol português, ser “pequeno” e ganhar é sempre suspeito. Não se trata de uma cabala, entenda-se. Impressionante é que ninguém decide assim, mas quase todos se submetem à “lógica” de... só poder ser assim!

4. Isso tem um nome: ideologia. Ou seja: uma construção puramente intelectual que muitas entidades aplicam, em simultâneo, como se reflectisse uma “natureza” inquestionável. Infelizmente, é normal que assim aconteça. Basta observar como o discurso dominante sobre o futebol alimenta a crença de que os resultados se podem classificar em termos de “justiça”, pressupondo um determinismo pueril que, não poucas vezes, mesmo os comentadores mais inteligentes, não têm a coragem de contrariar. Neste contexto, a proeza da “pequena” Académica adquire a conotação de coisa sem nexo, desprezável, porventura “injusta”.

5. A certa altura, no cabo, o discurso triste de Paulo Fonseca, treinador do Porto, em directo na sua conferência de imprensa, ocupava nada mais nada menos que sete canais! Sérgio Conceição, treinador da equipa vencedora, não teve, nem de longe nem de perto, a mesma evidência, rapidamente desaparecendo no éter... Como classificar esta curiosa perspectiva informativa? Talvez como uma injustiça.