sexta-feira, dezembro 27, 2013

Hiroshima na escrita de Duras

Marguerite Duras (1914-1996)
Mais uma reposição que se sauda: Hiroshima Meu Amor (1959), de Alain Resnais, é uma referência fundadora da Nova Vaga francesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Dezembro), com o título 'Sob o signo de Marguerite Duras'.

Fascinante assombramento: mais de meio século passado sobre o aparecimento de Hiroshima Meu Amor (1959), o filme de Alain Resnais parece pertencer também à filmografia de Marguerite Duras, autora do respectivo argumento. Não por demérito de Resnais, entenda-se; aliás, ele lançava, aqui, as bases de um fascinante modelo de narrativa, sustentado por uma montagem de prodigiosos ziguezagues temporais, cujos efeitos se podem sentir tanto no seu título seguinte, O Último Ano em Marienbad (1961), como na ligeireza ambígua de experiências mais recentes como Corações (2006) ou As Ervas Daninhas (2009).
Acontece que Hiroshima Meu Amor é todo ele construído a partir do poder evocativo das palavras, de acordo com uma lógica que está, obviamente, nos romances de Duras, mas também em alguns dos mais espantosos filmes que realizou, em particular no emblemático India Song (1975). É através das palavras que o par central tenta aceder às memórias da bomba atómica, seguindo uma lógica de paradoxal desnudamento: o que se diz e escreve existe como coisa intensa, quase carnal, que nos aproxima da verdade mais crua do acontecimento; ao mesmo tempo, o acontecimento parece escapar-se para o domínio do indizível, algures num tempo exterior ao próprio factor humano.
No limite, as palavras (e não os compromissos decorrentes das identidades sociais) são os instrumentos através dos quais cada personagem tenta consolidar a sua pertença a um lugar. Hiroshima Meu Amor pode mesmo resumir-se numa sinopse ironicamente geográfica: Hiroshima é a terra dele (Eiji Okada), Nevers a cidade de onde ela (Emmanuelle Riva) chegou. A gloriosa indefinição gerada pelo impulso amoroso faz mesmo com que o filme se pudesse intitular também “Nevers Meu Amor”. Duras não se oporia.