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A Propósito de Llewyn Davis é uma fabulosa viagem dos irmãos Coen pelo imaginário folk... e tem o mais sério candidato ao Oscar de melhor gato secundário — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Dezembro), com o título 'À procura da narrativa perdida'.
Música folk? Anos 60? Temos Bob Dylan e... o resto. Precisamente: Joel e Ethan Coen interessam-se pelo resto e filmam o seu Llewyn Davis (Oscar Isaac, actor da mais espantosa e expressiva “neutralidade”) como uma personagem à procura da sua própria narrativa. Como sempre (lembremos o exemplo recente de Um Homem Sério, lançado em 2009), os Coen parecem visar uma ferida simbólica com que deparam na própria mitologia fundadora da sociedade americana. A saber: a tensão nunca resolvida entre a sensualidade da utopia (o perene “Sonho Americano”) e a crueza com que a história colectiva responde às ilusões dos heróis ou anti-heróis individuais. A meu ver, é isso que confere a Indomável/True Grit (2010) um lugar central em toda a sua obra, quanto mais não seja porque, sendo um western, nele assistimos à metódica decomposição de qualquer miragem de redenção que o género clássico tenha podido edificar.
De forma esquemática, porventura sugestiva, talvez possamos dizer que A Propósito de Llewyn Davis funciona quase como um western urbano, inevitavelmente insólito e desencantado, em que a música se afirma como a derradeira fronteira existencial. Dir-se-ia que as canções que ouvimos são tanto a matéria profissional de Davis como o espelho, ora irónico, ora amargo, das suas muito humanas atribulações – aliás, os Coen têm o cuidado de as apresentar com princípio, meio e fim, não como pano de fundo da acção, antes como elementos vivos dessa mesma acção.
Tudo isso confere ao filme uma ligeireza ambígua que, em boa verdade, nos faz pressentir na personagem de Davis uma hipótese trágica. Como se Greenwich Village fosse o microcosmos de uma América a tentar coincidir com o seu próprio imaginário. Angústia garantida, grande cinema.