Na sequência do obituário de Peter O'Toole, eis algumas memórias da trajectória do actor que, através de Lawrence da Arábia, há muito entrou na história mitológica do cinema — texto publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro).
Em Janeiro de 2007, depois de conhecida a sua oitava nomeação para o Oscar de melhor actor, com o filme Vénus (2006), de Roger Michell, Peter O’Toole deu uma entrevista a Gaby Wood (The Observer) em que, sem preconceitos, aceitou falar dos problemas com que o consumo de bebidas alcoólicas marcou a sua existência. Recordando as noites dos anos 60/70, passadas com colegas como Richard Burton ou Richard Harris, declarou: “Não lamento nem uma gota.” E fez questão em fornecer o contexto das suas atribulações: “Éramos jovens que tinham sido crianças durante a guerra. Imagine o que significava sentir a liberdade em 1945 – não ter as bombas, não ter racionamentos, não ter interdições. Vivia-se uma avalancha de entusiasmo. E não éramos gente aborrecida, solitária, a beber vodka numa sala fechada. Nada disso: íamos para a rua e bebíamos em público!”
Ao recebermos a notícia do seu falecimento – no domingo, dia 15, no Wellington Hospital, em Londres, contava 81 anos –, não podemos deixar de pensar que O’Toole foi um desses actores de excepção que, para o melhor ou para o pior, foi deixando nos filmes as marcas da sua própria vida pessoal e, a partir de certa altura, os seus precoces sinais de envelhecimento. No limite, Vénus foi mesmo interpretado como uma espécie de testamento em forma de irónico auto-retrato, com O’Toole a interpretar a personagem de um velho actor retirado que se sente atraído pela jovem sobrinha (a “Vénus” do título) de um colega.
Depois de Vénus, O’Toole ainda participou em diversas produções, incluindo a animação Ratatouille (2007), em que deu voz ao crítico de gastronomia Anton Ego, e a série televisiva Os Tudors (2008), assumindo a figura do Papa Paulo III. Em todo o caso, as suas interpretações foram-se tornando cada vez mais raras e, em 2012, anunciou que punha um ponto final na sua carreira.
Vénus trouxe-lhe a proeza rara de, ao longo de mais de meio século de carreira, acumular oito nomeações para o Oscar de melhor actor sem nunca ter ganho a mágica estatueta dourada. É certo que, em 2003, a Academia de Hollywood o distinguira com um Óscar honorário (entregue por Meryl Streep), celebrando “as notáveis qualidades que ofereceram à história do cinema algumas das suas mais memoráveis personagens.” De qualquer modo, desde a sua primeira nomeação – com Lawrence da Arábia (1962), de David Lean –, O’Toole protagonizou uma carreira um pouco à imagem de algumas das suas mais prodigiosas composições: uma figura sempre no centro do imaginário colectivo e, ao mesmo tempo, um inclassificável solitário.
Em boa verdade, Lawrence da Arábia (recentemente reposto em cópia restaurada nas salas portuguesas) bastaria para lhe garantir o direito a um estatuto mitológico na história dos filmes. A sua interpretação de T. E. Lawrence possui a vibração, a transparência e o mistério que só o trabalho de um actor fora de série consegue conferir a uma tão polémica personalidade histórica. O mesmo se poderá dizer das duas personagens que lhe garantir as duas nomeações seguintes – aliás, ironicamente, trata-se da mesma personagem, já que O’Toole interpretou o rei Henrique II em Becket (1964), de Peter Glenville, e O Leão no Inverno (1968), de Anthony Harvey.
De origem irlandesa (nasceu em Connemara, no condado de Galway, a 2 de Agosto de 1932), O’Toole foi, antes do mais, um actor de teatro, tendo passado por alguns palcos emblemáticos como o Bristol Old Vic, o Royal Court Theatre e o National Theatre (neste último, em 1963, interpretou Hamlet, sob a direcção de Laurence Olivier). Em finais dos anos 70, os graves problemas de saúde motivados pelo álcool fizeram temer pela sua própria vida, tendo sido submetido a uma complexa intervenção cirúrgica para extracção do pâncreas e de uma parte do estômago.
Na sua carreira atribulada e, afinal, com poucas interrupções (participou em cerca de oito dezenas de filmes), O Fugitivo/The Stunt Man (1980), de Richard Rush, acabou por funcionar como sinal emblemático de um regresso redentor. Trata-se, de facto, de uma história de bastidores, vivida entre os duplos de cinema, surgindo O’Toole, na personagem de um cineasta, um pouco à imagem de si próprio: um homem marcado por um brutal desgaste físico, mas com uma inabalável energia criativa.