quinta-feira, dezembro 19, 2013

A inquietude segundo Spike Lee

O novo filme de Spike Lee, refazendo uma produção de origem coreana, é um objecto, no mínimo, desconcertante. Vale a pena descobrir os seus meandros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Dezembro), com o título 'Spike Lee reinventa filme da Coreia do Sul'.

A realização da versão americana de um grande sucesso do cinema da Coreia do Sul não seria uma opção óbvia para a carreira de Spike Lee. Mas aconteceu: Velho Amigo aí está, propondo uma derivação “made in USA” da história de um homem que é feito prisioneiro por alguém que se quer vingar dele. Qual o motivo da vingança? Nem o visado consegue compreender... Aliás, não sabe quem o prendeu.
No filme original, Oldboy (também lançado entre nós como Velho Amigo), o realizador Park Chan-wook contava a história de um homem de negócios encarcerado durante quinze anos. Agora, a vítima é um profissional da área da publicidade, Joe Doucett, interpretado por Josh Brolin.
O período em que Doucett está preso passou a ser de vinte anos. Além do mais, há também diferenças significativas no desenlace da história (mesmo evitando revelar as circunstâncias desse desenlace, podemos acrescentar que no filme americano não existe a personagem do hipnotizador que, a partir de certa altura, acompanhava o protagonista). Acima de tudo, Spike Lee insiste em sublinhar o contexto americano da sua narrativa, a ponto de evocar alguns momentos emblemáticos dos últimos vinte anos – os atentados do 11 de Setembro, o furacão Katrina, a tomada de posse de Barack Obama, etc. – através da televisão que existe na casa fechada onde vive Doucett.
O resultado é uma espécie de parábola sobre a solidão que se transfigura numa tragédia violenta sobre uma vingança obsessiva. Dupla vingança, já que, a partir de certa altura, Doucett se confronta, finalmente, com o responsável pelo seu encarceramento que, num jogo macabro de manipulação, o desafia a decifrar dois enigmas complementares: quem é ele e por que o prendeu?
Face ao registo muito cru de Velho Amigo, por vezes integrando componentes ligadas ao registo “gore” de algum cinema de terror, talvez seja inevitável reconhecer que este é um objecto atípico na filmografia de Spike Lee. É, pelo menos, um filme distinto dos seus trabalhos mais célebres, como Não Dês Bronca (1989), Malcolm X (1992) ou Verão Escaldante (1999), sempre envolvidos com a história política dos afro-americanos na sociedade americana.
Seja como for, perpassa por Velho Amigo um sentimento de inquietude, transversal à obra de Spike Lee. Poderemos defini-lo como uma contradição afectiva inerente às origens mitológicas da própria comunidade: por um lado, tudo e todos parecem depender de uma lei e uma ordem que aponta no sentido da máxima diversificação individual; por outro lado, paira sobre as personagens uma ambivalência carnal (porque incestuosa) que instaura um assombramento terrível, sem redenção possível.
Velho Amigo não ficará, de facto, como um momento “revelador” da filmografia de Spike Lee (como muitas produções americanas, também esta passou por vários realizadores possíveis, incluindo Steven Spielberg). Ainda assim, na sua espantosa dimensão de fábula existencial, há nele um misto de crueldade e desencanto que acaba por ser cúmplice das principais linhas de força da sua obra. Esperemos, um dia, poder vir a conhecer a montagem inicial de Spike Lee (com três horas de duração...) que os produtores recusaram distribuir.