Como é possível que o lugar-comum em torno dos Globos de Ouro (a "antecipação" dos Oscars...) continue a contribuir para lhes conferir um valor normativo, banalizando a importância da Academia de Hollywood e o significado dos seus prémios? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Dezembro).
Entrámos naquele período em que as mesmas formas de jornalismo (?) que demonizam Hollywood (e tudo aquilo a que chamam “americanadas”) multiplicam a sua alegre irresponsabilidade, celebrando com aplicada indulgência todos os fait divers em torno dos... Oscars. Aliás, a “tradição” manda que semelhante exercício comece com a visão formatada dos Globos de Ouro, atribuídos pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, anualmente incensados como a gloriosa antecipação dos Óscares.
Antecipação? Como é que eles podem falhar? – pergunta o crítico Peter Travers, na revista Rolling Stone: duplicando as categorias (drama e comédia/musical), os Globos acabam sempre por “acertar”. Em boa verdade, num plano banalmente estatístico, podemos até verificar que as coincidências entre Globos e Oscars são menos frequentes do que a vulgata jornalística proclama. Isto para já não falarmos da ginástica “conceptual” que, na perspectiva de Travers, este ano leva a inserir na categoria de comédia/musical filmes “intensamente dramáticos” como American Hustle, de David O. Russell, e The Wolf of Wall Street, de Martin Scorsese. Com ironia, o crítico recorda mesmo o “grupo de vencidos” não nomeados para melhor realização: Scorsese, Woody Allen (Blue Jasmine) e os irmãos Coen (A Propósito de Llewyn Davis).
Podemos não acompanhar o radicalismo sarcástico de Travers. Por mim, direi mesmo que estou longe de me reconhecer na sua visão dos actuais “blockbusters” de Hollywood. Seja como for, não são as normais nuances subjectivas que estão em causa. O que se discute é a percepção artística do cinema americano. O título do artigo de Travers, “The Dumb & Dumber Golden Globes” (à letra: “Os cada vez mais estúpidos Globos de Ouro”), faz um trocadilho com o título de uma comédia dos irmãos Farrelly (Dumb & Dumber, 1994) para enunciar uma visão de cruel cepticismo: “A Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood que atribui estes vibradores dourados é, basicamente, uma anedota.” Travers recorda que este é um colectivo de apenas 90 pessoas (para os Oscars, votam 6 mil profissionais), repórteres freelance sediados em Los Angeles a quem basta ter escrito quatro artigos por ano para poderem votar, sem esquecer que os Globos são um rentável negócio, com a respectiva transmissão televisiva a valer alguns milhões de dólares.
Não se trata de negar, entenda-se, que a história dos Globos de Ouro, além de alguns inesquecíveis apresentadores (Ricky Gervais, para o melhor ou para o pior...), está também recheada de momentos exemplares de cinefilia. O que se discute é a visão pueril, feita de passadeiras vermelhas e estatísticas simplistas, que reduz uma das mais complexas cinematografias do mundo a uma superficialidade mais ou menos cor de rosa. Simplificar Hollywood é sempre passar ao lado da história do cinema.