quinta-feira, novembro 07, 2013

Como se falava dos Beatles por estes lados...


Este texto, sobre a edição de um livro sobre a forma como a imprensa portuguesa da altura viveu o fenómeno dos 'fab four', foi originalmente publicado na edição de 6 de novembro do DN com o título 'Como se falava dos Beatles#sob o olhar atento da censura'.

Maria Emília, estudante de Filologia Românica, dizia que o “aspeto físico” do grupo “não é atraente nem recomendável”. Para Manuel, estudante de Arquitetura, eram “instrumentos duma vasta máquina de propaganda que desde um Elvis Presley procura impor a essa parte da juventude um ídolo que lhes satisfaça as tendências histéricas”. Armando, um produtor radiofónico, explicava que “refletem o mais lamentável sector da época que atravessamos”. O padre João reparava que “estes meninos ingleses” já “não se distinguem das meninas”. E Maria Beatriz, estudante liceal, acrescentava que “o conjunto português de Gonçalo Lucena (por exemplo) é mais ritmado”... Estas opiniões surgiram a 28 de agosto de 1964 nas páginas da revista Flama. E de quem se falava? Dos Beatles... Pois este é um entre os vários exemplos de abordagens da imprensa nacional ao fenómeno que então era gerado pelos fab four, que se tinham estreado discograficamente em Portugal em novembro de 1963 com o EP She Loves You. Memórias agora reunidas em Os Beatles na Imprensa Portuguesa 1963-1972, de Abel Soares Rosa, livro com tiragem limitada que acaba de ser lançado em autoedição.

A imprensa portuguesa acompanhava então “o fenómeno do vendaval Beatles sempre com a presença tutelar da feroz censura”, explica o autor ao DN, lembrando que “o mais frequente era uma certa irritação nacional contra o rock’n’roll e qualquer outro tipo de libertação”. No início dos anos 60, o fenómeno gerado pelos Beatles era descrito como sendo “decadente, revolucionário, caótico”, sublinhando que havia quem defendesse que “eletronicamente andavam a explorar as débeis sensibilidades adolescentes”. A evolução foi “lenta, o tom reprovador continuou, macs a presença e a inovação dos Beatles era tal que foi impossível de travar”. E com o tempo “renderam-se”.

O autor, colecionador de discos e memorabilia pop, recorda os anos 60 e 70 como um tempo que deu início “ao caminho da renovação”. A Guerra Colonial “destruiu muitos sonhos” e a “juventude universitária (e liceal) ganhou consciência”, e logo “o país viu ao longe, muito longe, um mundo em mudança”. A pop abria então janelas, mas “na imprensa a música acabava por ter um lugar secundário”. Recorda mesmo que, em 1969, a revista TV (semanário da RTP) escrevia: “Os Beatles não fazem arte. Fazem escândalo.” A agitação “preocupava, o vento de cultura rebelde chegava a Portugal”. E remata: “Os Beatles foram o nosso 25 de Abril pop, libertaram o corpo e a alma.”

Apesar de tudo, Abel Rosa lembra que “nunca outros artistas tiveram tanto destaque na imprensa portuguesa da época”, nem mesmo Elvis. A exceção, diz, eram os “nacionais-cançonetistas que as revistas de então promoviam ao bom estilo do orgulhosamente sós, os grupos yé-yé portugueses e Cliff Richard e os Shadows que tinham ar de bons rapazes”. Já os contemporâneos Rolling Stones, apesar do sucesso de que já gozavam, “nunca conseguiram atingir o mesmo nível de cobertura na imprensa portuguesa da época”, vincando que “ainda eram olhados com mais desconfiança”.

Mesmo assim, Abel esclarece que “apesar do nacional-cinzentismo que então reinava, os Beatles não tiveram aquilo a que hoje em dia se convenciona chamar de má imprensa”. Ou seja, “a cobertura até foi alta, capas, centenas de artigos e notícias, mas a mensagem era consistente: os Beatles eram símbolos a evitar pela juventude portuguesa, e na maioria das vezes o tom era reprovador”. Além das revistas também foram publicados “números especiais integralmente dedicados aos Beatles, posters e uma caderneta de cromos, hoje uma raridade internacional”.

Abel Soares Rosa, que tem já outros livros publicados sobre as discografias portuguesas dos Beatles e dos Rolling Stones, confessa ao DN uma antiga paixão pela “música, a moda, a arte, a contracultura”, no fundo, aquilo que entende como “todo um espelho dessa grande mudança que o rock’n’roll motivou a partir da década de 50 e especialmente 60. Não gosta contudo de se ver como um colecionador, porque entende que os seus discos e revistas e livros “têm vida, não estão estáticos nas prateleiras lá de casa”.

A génese deste novo livro está ligada a um desafio lançado pelo DN ao seu autor em 2012, convidando-o a colaborar num trabalho sobre os Beatles e os Rolling Stones então publicado no caderno Quociente de Inteligência e onde descreveu de que forma os media portugueses da época se referiam a ambos os grupos. “Na sequência do pedido fui reler algumas dessas edições e fiquei fascinado com a grafia, a paginação e com os conteúdos surpreendentes.” Nesse momento decidiu então “avançar para um livro com uma seleção das melhores capas e artigos da época, recriando o estilo vintage”.