quarta-feira, outubro 02, 2013

Futebol e conflitualidade

REMBRANDT
Quatro estudos de cabeças de homem
c. 1635
De que falamos quando falamos de futebol?... Em televisão, nalguns casos, apenas parece interessar a possibilidade de existir ou gerar conflito — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (27 Setembro).

Dois treinadores de futebol distinguiram-se nos últimos dias: no final de um jogo, Jorge Jesus envolveu-se num desaguisado com alguns polícias; numa conferência de imprensa, Leonardo Jardim disse que não faz sentido transformar os árbitros em bodes expiatórios dos maus resultados.
Vale a pena começar por perguntar quantas vezes as respectivas imagens foram expostas nos pequenos ecrãs. Infelizmente, é fácil responder: Jesus foi mais visto e revisto que as eleições na Alemanha ou o atentado terrorista no Quénia; Jardim não passou de um detalhe a que quase ninguém reconheceu pertinência ética ou valor simbólico.
Obviamente, não se trata de discutir o peso social e a dignidade dos clubes que Jesus e Jardim representam. Do meu ponto de vista, a exacerbação clubista de tudo o que acontece no futebol é mesmo uma das doenças infantis do nosso espaço televisivo. Trata-se, isso sim, de voltar a constatar uma triste lei informativa: tudo o que seja sinal ou promessa de conflito (de “polémica”, como alguns gostam de proclamar) adquire uma evidência automática, repetitiva e doentia.
Uma vez mais, o que aqui se discute é o sistema de linguagens com que a televisão integra o futebol, consagrando-o, objectivamente, como factor dominante da nossa cultura audiovisual. Por isso mesmo, este é mais um pretexto para questionar os comentadores que consideram que prestam um bom serviço à comunidade classificando os resultados de “justos” e “injustos”. Na prática, face à salutar arbitrariedade que os golos sempre podem envolver, conseguiram instilar no tecido social um esvaziamento metódico da complexidade e das exigências legais de qualquer noção de justiça.
Não por acaso, aqui e ali vai perpassando a sugestão de que, no caso de Jorge Jesus, a polícia se terá excedido nas suas competências... Ora, se estivermos atentos, a nossa história ensina-nos o que é um estado policial. No espaço da democracia televisiva, há qualquer coisa de pueril no facto de as forças da ordem surgirem quase sempre, automaticamente, como as primeiras entidades suspeitas de abuso da própria lei.