sábado, outubro 19, 2013

Filmar o Holocausto (1)

Esta é a primeira parte de um artigo sobre as representações do Holocausto no cinema, originalmente publicado na edição de 12 de outubro do suplemento Q. do DN com o título ‘Quando o grande ecrã não pode fazer silêncio’. 

Está longe de ser assunto pacífico o da representação do Holocausto pela arte. O crítico e ensaísta George Steiner afirmou um dia que “o mundo de Auschwitz está para lá do discurso, uma vez que está para lá da razão. E pronunciar o impronunciável é arriscar a sobrevivência da linguagem como criadora e recipiente da verdade racional humana”. O professor e escritor Elie Weasel defendeu que, mesmo sendo uma blasfémia escrever um romance sobre o Holocausto, não deveríamos fazer silêncio, o que equivaleria a dar uma vitória moral aos nazis. Por seu lado, Alvin Rosenfeld, autor de Double Dying: Reflections on Holocaust Literature (livro de 1980 sobre a relação da literatura com o Holocausto), defende pelo contrário que maior seria a blasfémia e a injustiça que decorreria do silêncio. E a estas reflexões podemos acrescentar o postulado de Theodor Adorno que defende ser bárbaro escrever poesia depois de Auschwitz... Conhecendo estas e outras posições, Pawel Spiewak, diretor do Instituto Histórico Judaico em Varsóvia (Polónia), termina o texto num catálogo de uma exposição sobre representações artísticas atuais de memórias do Holocausto reconhecendo que cada um que se lance ao desafio de enfrentar essas páginas da história através de uma linguagem e veículos no campo das artes enfrenta inevitavelmente um desafio ético: “Como fazer justiça e como encarar e representar um acontecimento considerado por muitos como um ponto de viragem na história europeia e certamente na história do povo judaico?” (1)

O cinema foi das primeiras expressões artísticas a confrontar-nos com as memórias do Holocausto. Death Mills, um documentário de propaganda, assinado por Billy Wilder, foi produzido em 1945 tendo em vista uma apresentação ao público alemão do que havia ocorrido sob a égide do III Reich. Estreado em 1946, O Estrangeiro, de Orson Welles, deverá ter sido o primeiro filme de ficção a mostrar às salas de cinema imagens (reais) de campos de concentração. Um ano depois, na Polónia surgia Ostatni Etap (com título internacional The Last Stage), filme de Wanda Jakubowska que recorda as experiências que ela mesmo viveu quando esteve encarcerada em Auschwitz.

Em Film and The Holocaust, um dos mais completos (e versáteis) olhares panorâmicos sobre a história das representações do Holocausto pelo cinema, Aaron Kerner explica que grande parte da história que aqui se começava a contar seguiu essencialmente aquilo que descreve como uma “doutrina conservadora da verosimilhança”. E cita mesmo o estudioso do Holocausto Terrence des Pres, quando este refere que ali se “guarda o futuro preso ao passado”, algo que diz parecer uma “postura nobre, reconfortante, mas também debilitante”. É o mesmo Des Pres que define que três princípios básicos comandam a maioria das expressões cinematográficas desta realidade. Numa primeira reconhece que o Holocausto é “representado, na sua totalidade, como um evento único, como um caso especial e um mundo à parte, acima, abaixo e separado da história”. Depois, que “as representações do Holocausto serão tão fiéis e corretas quanto possível na relação com os factos e as condições em que os eventos decorreram, sem mudanças nem manipulações por quaisquer razões que sejam - razões artísticas inclusive”. E, por último, “o Holocausto será abordado como um acontecimento solene ou mesmo sagrado, com uma seriedade que não admite respostas que possam obscurecer a sua enormidade ou desonrar os seus mortos”. (2)

Na introdução do mesmo livro Aaron Kerner lembra que, “operando num sistema de crueldade institucionalizada, os perpetradores são retratados com uma pretensão sádica”, sublinhando que “esta constelação de personagens favorece enredos maniqueístas”. E aponta ainda a existência de uma “resistência a tratamentos artísticos do Holocausto através de um modo alegórico”, que explica como o resultado de uma “confluência complexa de trajetórias históricas, incluindo o tempo histórico e cultural em que aconteceu e as atitudes históricas face às formas narrativas”. Como contraste o autor lembra como os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasaki conheceram já abordagens de um pendor mais poético, observando Kerner que, contudo, “os japoneses não estavam sujeitos aos mesmos preconceitos históricos”. (3)

Tal como reflete neste seu livro, Aaron Kerner explica que quando o cinema se confronta com as memórias destes acontecimentos são colocadas em jogo as fronteiras éticas do que é certo e errado, do que é ofensivo e respeitoso. Esses são limiares “subjetivos” e naturalmente relacionáveis com o contexto, defende. Diz mesmo que “há uma preocupação legítima na preservação da dignidade das vítimas, mas seria um erro ter em má conta um filme apenas na base de que pudesse eventualmente ser ofensivo”. De resto, diz logo a seguir que o Holocausto é já por si ofensivo, perturbante e algo que desafia a nossa crença na humanidade. E por isso lembra o que o escritor alemão Günter Grass disse sobre Auschwitz: “Finalmente conhecemo-nos a nós mesmos.” (4)

'Nuit et Brouillard'
Um dos mais assombrosos olhares que o cinema alguma vez lançou sobre estas memórias surgiu apenas dez anos após o fim da II Guerra Mundial. Retomando imagens de arquivo, juntando-as a um texto de Jean Cayrol, lido por Michel Bouquet e contando ainda com música de Hans Eisler, Noite e Nevoeiro, de Alain Resnais, concilia o retrato histórico com a expressão de um ponto de vista, num filme de 32 minutos que continua a ser uma das grandes referências do cinema documental sobre o Holocausto.

Com várias produções assinadas ao longo dos anos, muitas nascidas para televisão, o documentarismo continua, quase 70 anos depois do fim da guerra, a visitar com novas ideias este mesmo tempo e tema. Um dos melhores exemplos de uma abordagem diferente surgiu em 2010 sob o título A Film Unfinished. Realizado por Yahel Hersonski, parte de uma bobina encontrada de um filme de propaganda realizado pelos alemães no gueto de Varsóvia em 1942, confrontando o olhar propagandístico com as sequências que, vetadas, cairiam ao chão na sala de montagem, acrescentando ainda entrevistas com sobreviventes e mesmo um dos operadores de câmara. O filme cria assim um olhar vivencial na primeira pessoa que nos permite refletir não apenas sobre o que vemos, mas sobre a própria ideia da utilização do cinema como veículo de uma mensagem manipulada.

(1) in Sztuka Polska Wobec Holocaust/Polish Art and The Holocaust, catálogo da exposição patente no Zydowski Instytut Historyczny, 2013.
(2) in Film and The Holocaust, de Aaron Kerner. (Continuum, 2011), pág. 2.
(3) ibidem, pág. 6.
(4) ibidem, pág. 7.