domingo, outubro 13, 2013

Entre cinco discos históricos
de Scott Walker (4 e 5)

Este texto é a terceira parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias com o título ‘Scott Walker: Cinco discos para redescobrir um mito’.

É contudo com Scott 4 (ainda de 1969), que edita originalmente como Nigel Scott Engel (e que representa o seu primeiro fracasso comercial) que podemos encontrar a sua obra-prima. Este é o primeiro disco que é integralmente feito de composições de sua autoria. E, sem se afastar dos caminhos que percorrera nos três discos anteriores, vinca as marcas de uma personalidade definitivamente encontrada num lote de canções curiosamente menos focadas num só caminho (mais que nunca afastado da simplicidade melodista da pop), e muitas vezes mais parecendo nascidas de fragmentos de ideias. O fulgor rítmico de Hero of The War (sobre o absurdo que é a guerra) ou a assimilação de elementos country em Rhymes of Goodbye contrasta com a elegância frágil de Duchess ou a assombração sinfonista de The Old Man's Back Again (Dedicated To The Neo-Stalinist Regime), canção que comenta os recentes acontecimentos de repressão em Praga e evidencia a alma política que emerge entre uma escrita habitada por ambiguidades através das quais se revelam frestas (nem sempre decifráveis) do mundo de um solitário. Durante a gravação de Scott 4 o músico tinha ao pescoço a chave de uma cela para meditação num mosteiro beneditino na ilha de Wight onde fazia retiros desde 1966. A opção pela utilização do seu nome real, e não da persona musical que tinha criado anos antes, sublinha essas assombrações de solidão, num mundo povoado por estímulos que chegam então da escrita de Camus ou do cinema de Bergman (em particular o filme O Sétimo Selo).

O fracasso do disco nas vendas encontrou em 1969 um Scott Walker bem distinto daquele que, depois de semelhante desaire em 1984 com Climate of Hunter, resistiu à frustração da editora e negou as sugestões de possíveis trabalhos de colaboração com nomes como Brian Eno, Daniel Lanois ou David Sylvian, como conta em 'Another Tree Falls', Jeremy Reed ( Creation Books, 1998). Editado em 1970, 'Til The Band Comes In é um disco a dois tempos, indiciando a etapa algo consequente que se segue com uma série de álbuns que edita na primeira metade dos setentas e da qual só recupera com a reunião dos Walker Brothers para três novos discos entre 1975 e 1978. Dez das canções são originais que procuram seguir o caminho que talhava, embora sem a o fulgor inquieto que domina Scott 4. Mas as cinco faixas finais do álbum são versões algo desconcertantes que nada acrescentam a um disco que teria encerrado de forma mais interessante à faixa dez.

Em 1998, 28 anos depois de 'Til The Band Comes In e três volvidos sobre o soberbo Tilt que reativara a sua verve (embora por caminhos mais assombrados e extremados), Jeremy Reed abria as páginas de Another Tree Falls, o já referido livro dedicado a Scott Walker sublinhando a extrema dificuldade de, mesmo ao cabo do que era então uma carreira de mais de 40 anos, conhecer de facto o homem por detrás da persona. Reed fala de Scott Walker, que conhecemos e admiramos. “o dramático baladeiro barítono” que lança a sua voz grave “sob uma muralha de som orquestral wagneriano”. Mas depois há Noel Scott Engel, o “indivíduo introspetivo e fechado, que escolheu fazer da sua vida um segredo quase inviolável”, chegando-o mesmo a comparar ao jogo e entre o real e a ficção que podemos estabelecer entre Isidore Ducasse e o seu alter-ego, o Conde de Lautreamont, autor dos Contos de Maldoror... É uma opinião... Na verdade, pode haver entre as canções da sua obra (particularmente as da fase 1967-70 e as posteriores a 84) alguns sinais e pontas soltas a convidar-nos à sua descoberta. Segundo cita Reed no seu livro, Scott Walker terá a dada altura revelado que Scott 4 tentara juntar a escrita de Sartre, Camus e Yevtushenko com as linhas modais de Bartók, comentando que ninguém o notara... Talvez esteja na hora de regressar a esse disco. Dele partir para o resto de uma obra notável. E mesmo que Nigel Scott Engel nunca nos de pistas mais claras sobre si mesmo, podemos procurar pelo menos descobrir que é, afinal, Scott Walker. E não há melhor sugestão por onde começar que o lote de cinco discos que fazem desta caixa antológica (com som remasterizado) uma das melhores reedições de 2013.