sábado, outubro 19, 2013

Cristina Ferreira "pronta para amar"

I. Quando uma mulher, publicamente, declara "estou pronta para amar", sentimo-nos tocados pela mais básica estranheza humana: que aconteceu para a dimensão mais sagrada das relações humanas ter chegado a esta representação jornalística de obscena banalidade? E podemos começar por supor uma de duas coisas: primeiro, que ela realmente o disse; segundo, que o jornalista não está a ser fiel ao que ouviu.

II. Por regra, semelhantes situações são discutidas a partir de uma dicotomia deontológica: a imprensa diz a verdade ou a imprensa mente.

III. Do meu ponto de vista, tal discussão pode, em alguns momentos, ser motivada. Mas é muito redutora e, no limite, apenas nos desloca para um território abstracto onde perdemos o contacto com o concreto do aqui e agora — Portugal, Europa, 18 de Outubro de 2013.

IV. Ou seja: tenho toda a disponibilidade para acreditar que estamos perante pessoas sérias e responsáveis — quem entrevista e quem é entrevistado (e, obviamente, também quem edita e publica) são adultos plenamente conscientes do que dizem e fazem, assumindo as consequências da materialidade dos seus actos públicos.

V. O que, creio, importa pensar é a conjuntura jornalística e, mais do que isso, social que gera situações como esta: em pleno séc. XXI, uma mulher declarar-se, publicamente, "pronta para amar".

VI. Podemos começar a descortinar o emaranhado de significações de tal declaração se nos lembrarmos do seu impossível contraponto. Dito de outro modo: no imaginário desta imprensa de pessoas vivas a que foi atribuído o cognome de "famosos", seria impensável surgir um homem a declarar-se "pronto para amar". Porquê? Porque, neste contexto, as mulheres são representadas como "românticas" compulsivas (nada a ver com a discussão da nobreza histórica da palavra romantismo), surgindo os homens, quase sempre, implicitamente, enquadrados pelo modelo machista de predador sexual.

VII. O efeito devastador desta conjuntura (e não será preciso sublinhar que o episódio aqui referido é apenas um exemplo banal de um imaginário jornalístico/televisivo que, todos os dias, circula pela sociedade portuguesa) é, a meu ver, simbólico e político: simbólico porque envolve a violenta banalização dos afectos humanas; político porque promove um conceito de sociedade em que tudo, inclusive a capacidade de amar e ser amado, se mede apenas pelo seu grau de exposição pública.

VIII. Há um mistério delicado que, por pudor, tendemos a contornar: como é possível que haja pessoas que aceitem este tipo de exposição, muitas vezes induzindo-a e ampliando-a? Escusado será dizer que tal mistério é uma moeda de duas faces: como é possível que haja quem queira confundir este modo de intervenção pública com os desígnios e valores do verdadeiro jornalismo?

IX. Não é possível pensar, formular e executar uma política cultural em Portugal sem ter em conta que esta é, objectivamente, a cultura dominante no nosso país — a instrumentalização dos afectos é a sua lei primordial, no limite levando-nos a pensar que não é possível viver e amar sem satisfazer os padrões de comportamento dos "famosos".

X. Seria, por isso, gratuito e irresponsável descrever ou avaliar um caso como este promovendo o alarido de uma censura moral dos seus protagonistas — em boa verdade, não poucas vezes, esse é o discurso cínico da própria cultura jornalística dos "famosos". O que está em jogo é a continuada deterioração do espaço público.