domingo, setembro 08, 2013

Televisão, povo e futebol

Seja-me permitida a ironia de evocar o belíssimo cartaz de Bruscamente no Verão Passado (1959), filme de génio de Joseph L. Mankiewicz, como magoado contraponto à tristeza de mais uma estação de todas as barbaridades televisivas — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (6 Setembro), com o título 'Bruscamente neste Verão'.

1. Sabemos pouco sobre o modo como as televisões interpretam as imagens (e sons) que difundem. Neste Verão, a brusquidão dos incêndios coloca uma questão que, sendo jornalística, é também conceptual e simbólica, de programação e visão do mundo. Assim, a multiplicação dos fogos traduz-se na proliferação televisiva de personagens do povo anónimo, vivendo situações que só podemos classificar como trágicas; ao mesmo tempo, são também personagens desse mesmo povo anónimo que garantem a histeria figurativa dos espectáculos de Verão através dos quais as televisões celebram a música pimba e a possibilidade de o cidadão “comum” ganhar algumas centenas ou milhares de euros... Daí as perguntas que ficam: assumindo-se as televisões como veículos populares (tradicionalmente desconfiando de tudo aquilo que classificam como “intelectual”), como avaliam esta esquizofrenia figurativa? Mostram a festa compulsiva para rasurar o realismo da dor? Encaram o povo como uma entidade vazia que apenas serve para garantir as alternâncias pré-formatadas de “notícias” e “entretenimento”? Ou nunca pensaram em nada disso?

2. Mesmo sem discutirmos o peso avassalador que o mercado das transferências futebolísticas adquiriu na informação televisiva (desportiva ou generalista), assistimos nestas últimas semanas à instalação de mais uma curiosa, e profundamente deprimente, guerra clubista. Assim, há discursos que passaram a integrar uma grosseira erotização: “O meu clube conseguiu mais milhões que o teu...” Não que eu acredite que os ordenados milionários de futebolistas e treinadores sejam a causa dos problemas estruturais que a economia portuguesa acumulou ao longo de décadas. Mas há qualquer coisa de obsceno nesta atmosfera mediática em que nos massacram, diariamente, com os índices da “crise”, ao mesmo tempo que se consagram como coisa singularmente divertida e “natural” as fortunas gastas no futebol. Entretanto, a Cinemateca Portuguesa recebeu 700 mil euros, garantindo uma nova e radiosa geração de apanha-bolas...