domingo, agosto 18, 2013

Há um outro Górecki para descobrir


Os filhos dos peixes sabem geralmente nadar. Mas nem sempre é fácil viver sob comparações... E se o pequeno Wolfgang em muito superou as potencialidades do pai Leopold e, na família Bach, Johann Sebastian ofuscou os muitos que sob o mesmo apelido também compuseram música, já entre a dinastia Strauss houve talvez uma mais equilibrada distribuição de feitos. No panorama da música do nosso tempo não são muitos os casos de testemunhos passados de pai para filho. Um dos casos mais notáveis é talvez o de Markus Stockhausen, trompetista e compositor, filho de Karlheinz Stockhausen, que tem conciliado um espaço para a sua música com uma dedicação (antiga) ao legado do pai. Há entretanto mais um nome que vale a pena descobrir, refletindo o que começamos a descobrir da sua obra uma presença das heranças do pai (sobretudo na forma como transcendeu as marcas e normas do seu tempo e redescobriu em ecos de outras épocas as linhas para procurar um novo presente).

Nascido em Katovice (Polónia) em 1971, Mikolaj Gorécki é filho do aclamado Henryk Górecki, um dos nomes maiores da música europeia da segunda metade do século XX. Tendo começado a estudar violino e piano desde muito cedo, passou pela academia de música da sua cidade (onde teve o pai como um dos professores), concluindo depois a sua formação entre o Canadá e os Estados Unidos. Editado este ano pela etiqueta polaca Dux, Works For String Orchestra (segundo título que lança por esta editora) é um interessante primeiro retrato de uma personalidade que reflete ecos de um interesse pelas formas do romantismo e, tal como a música do seu pai, decide seguir para longe do mundo de regras mais impositivas que definiu alguma da música da segunda metade do século XX. Sob a direção de Wojciech Rajski, a Polska Filharmonia Kameralna Sopot apresenta uma série de pequenas obras para orquestra de cordas onde Mikolaj Górecki define percursos sobretudo dominados pela melancolia sob uma linguagem que recupera linhas com raiz na tradição do romantismo, um sentido melodista tranquilo e fluente e um gosto pelos acontecimentos de ritmo e tempo que têm em Stravinsky uma escola maior.


E há uma sinfonia póstuma para estrear em 2014

Mikolaj Górecki é também o protagonista na concretização de um último grande projeto deixado incompleto pelo seu pai: a conclusão da Sinfonia Nº 4. Este texto é uma versão alargada de um outro originalmente apresentado na edição de 12 de agosto do DN com o título ‘Sinfonia Nº 4 de Górecki vai ter estreia mundial em 2014’


Estreada em 1977 no Festival de Royen, a Sinfonia Nº 3 do compositor polaco Henryk Górecki (1933-2010) conhecia então um discreto início de vida, mal imaginando o compositor e aqueles que o rodeavam que o perfil público desta obra seria transformado 15 anos depois com uma gravação, editada pela Nonesuch (com a voz de Dawn Upshaw como solista), que a transportaria ao patamar em que hoje a reconhecemos: uma das mais belas e arrebatadoras das obras sinfónicas da segunda metade do século XX, cruzando ecos de um lamento do século XV, uma canção folk silesiana e as palavras deixadas numa parede de uma cela da Gestapo nos tempos da II Guerra Mundial. A gravação, que atingiu vendas superiores ao milhão de unidades, deu grande visibilidade a Górecki, abrindo portas a outros registos de obras suas, nomeadamente na Nonesuch, que dele fez um dos nomes maiores do seu catálogo, editando sobretudo obras vocais e quartetos de cordas. Durante anos esperou-se contudo pela sua sucessora, a Sinfonia Nº 4, da qual chegaram notícias em 2009, chegando a pensar-se uma data de estreia para o ano seguinte. A morte do compositor, em novembro de 2010, impediu-o de a completar. Mas a 14 de abril de 2014, Londres assistirá à estreia da obra, numa versão concluída pelo seu filho, o também compositor Mikolaij Górecki, revela Gregorz Michalski, presidente da Sociedade Witold Lutoslawski e amigo pessoal de Górecki.

O compositor deixou a sinfonia “numa versão para piano, que tocou para amigos, cantando a linha melódica”, e “comentando” o que se ouvia, explica este musicólogo, que foi convidado a ouvir esta obra, acrescentando que “o filho a completou há cerca de um ano”. A estreia mundial está marcada para o Royal Festival Hall, em Londres, cabendo a primeira apresentação pública à London Philharmonic Orchestra, dirigida por Andrei Boreyko, contando com o violinista Julian Rachlin como solista. Com estreia originalmente prevista para a capital britânica em 2010, a Sinfonia Nº 4 de Górecki resulta de uma encomenda da própria London Philharmonic Orchestra e do Southbank Centre londrino, com apoio do Instituto Adam Mickiewicz Institute, a Los Angeles Philharmonic Association e a Zaterdag Matinee, de Amsterdão.

Henryk Górecki (na foto ao lado) é, juntamente com nomes como Witold Lutosławski (1913-1994) ou Krzysztof Penderecki (n. 1933) um exemplo maior da vitalidade e modernidade que a música polaca respirou na segunda metade do século XX e que, em grande parte, como explica o musicólogo Gregorz Michalski, se deveu ao Warszawska Jesien (Outono em Varsóvia), um festival de música contemporânea criado em 1956 que teria consequências enormes para a história da música do país, abrindo mesmo uma clareira de ideias em pleno bloco socialista. “O realismo socialista termina em 1956”, recorda Michalski, cabendo ao festival a criação de um “ponto de encontro para a música do ocidente e de leste, que era aceite pelas autoridades e que funcionou como um emblema de liberalismo de um país socialista”. Ligado à organização desde cedo, Lutoslawski, que estava também na direção da estrutura que decidia que edições eram feitas, teve assim um papel determinante na abertura de horizontes a novas gerações de compositores polacos, entre os quais Górecki.