Entre as muitas “narrativas” que nos tem dado a escutar desde que foi fundado em 1969 pelo alemão Manfred Eicher, o catálogo da ECM tem-nos permitido acompanhar os caminhos pós-"soviéticos” de compositores nascidos ou crescidos na URSS. E podemos citar nomes como os de Arvo Pärt (nascido na Estónia), Valentin Silvestrov (na Ucrânia) ou Giya Kanchelli (Geórgia) para termos uma expressão deste quadro com um primeiro lote de figuras absolutamente marcantes no panorama atual da composição. Mas a estes quatro nomes devemos juntar mais um: Victor Kissine, que nasceu em Sampetersburgo (então Leninegrado) em 1953 e, tal como Pärt (que desde 1980 vive em Berlim), há muito deixou a cidade e o país, residindo com a família na Bélgica.
O seu nome dá, desde logo, conta de uma afirmação de oposição ao regime que corria entre a sua família. “Chamo-me Victor porque nasci dez dias depois da morte de Estaline. E o meu avô, que era filólogo e muito conhecido em Sampetersburgo, quis assim celebrar esse acontecimento com um nome que significa a vitória”, explica, colocando assim primeiras coordenadas que acabariam por definir também o seu lugar no mapa político e cultural da cidade. E na Leninegrado dos tempos da URSS, onde reconhecia uma “vida intelectual muito própria”, Kissine identifica três modos “de sobreviver e tentar manter uma certa liberdade” para os compositores. “Os compositores podiam viver jogando as regras do jogo, e havia quem o aceitasse. Não os podemos julgar... Depois, e essa era o que acontecia com a maior parte dos casos, havia aqueles que tentavam um equilíbrio entre as suas demandas criativas pessoais e as condições totalitárias que todos eram obrigados a aceitar, mesmo tendo uma vida social que não procurava entrar no jogo”. Mas havia “uma terceira maneira de estar, com um comportamento de oposição face ao regime, a que se chamava na cidade como 'emigração interior'. Era uma espécie de isolamento intelectual, e aí escolhia-se viver na obscuridade, não participar de todo até mesmo na vida social”. Este era, conforme confessa, o tipo de comportamento próprio de intelectuais da cidade que faziam o círculo de amigos do seu avô e do seu pai. O compositor define o poeta e ensaísta Joseph Brodsky como “o exemplo mais flagrante desse tipo de comportamento”, lembrando que “chegou a estar preso pela simples razão de não participar na vida social”. Brodsky era poeta, “mas não tinha essa confirmação oficial no passaporte nem pertencia ao sindicato dos escritores”, recorda ao lembrar uma das figuras que para si mais representam as memórias que tem da cidade e que, de certa forma, agora evoca em Between Two Waves.
Dos tempos do regime comunista, que correspondem ao momento em que encetou a sua carreira, Victor Kissine reconhece por um lado as memórias de uma educação musical “muito sólida”, que durou dez anos. Mas lembra que “num regime totalitário todos estão envolvidos num contexto político”. Nessa altura havia um grupo de compositores que eram descritos como “não conformistas” e, sublinha, “malvistos pelo regime”, sendo a sua música “praticamente invisível”. Cita o caso de Arvo Pärt, que, “a partir do momento em que encontrou o seu estilo tintinabuli (que é como quem diz a partir de 1977 ou 78), entrou nesse círculo”. Entre esse grupo cita também Alfred Schnittke ou Sofia Gubaidulina. E havia mais, acrescenta, “mas não tão conhecidos no Ocidente”. Muitos deles, “para sobreviver, trabalhavam em cinema”. O próprio Shostakovich tinha composto música para cinema. E ele mesmo acabou por também escolher esse caminho. “Se o meu nome era um pouco reconhecido na URSS foi porque fiz alguma música para cinema e sem usar qualquer pseudónimo”, explica. “Mas fazia-o como Alfred Schnittke, ou seja, de uma maneira séria.” Até porque, acrescenta, trabalhou “com realizadores bem interessantes” no início da sua carreira. Ao fazer música para cinema teve também “a oportunidade para trabalhar com boas e grandes orquestras, o que nem sempre acontece no ocidente, porque é caro. Mas não era assim nos dias da URSS porque o cinema era considerado como o meio de propaganda mais importante. Não se contavam tostões. E havia meios”. Todavia, diz que “era possível expressar a personalidade nas bandas sonoras até um certo limite, até mesmo o bailado era muito censurado”. Kissine confirma que “praticamente todos os espectáculos” que fez “foram malvistos pela censura e até mesmo censurados” e que “o mesmo aconteceu com alguns filmes”.
Tudo muda, assim, quando se muda para o Ocidente já depois da Perestroika. “Quando vivia na URSS fazia uma música autónoma que guardava para mim e compunha para cinema para viver”, descreve. Daí em diante passou assim a fazer fazer das suas coisas “mais privadas algo menos privado”. Durante os anos 90 compôs essencialmente música de câmara, algo que lhe “faltara na URSS, onde tinha feito sobretudo música orquestral”. Com o tempo alargou horizontes. E chegou agora a um momento na sua vida em que volta a refletir sobre a cidade onde nasceu e cresceu. “É uma cidade muito particular”, descreve. “Muito bela, inteligente, forte. Há uma cidade real. Mas também uma imagem de memória que é influenciada por tudo o que foi escrito, pelas palavras dos grandes poetas. E essa cidade imaginária é a que está sempre comigo.” Kissine crê assim que há nas peças que apresenta em Between Two Waves “um reflexo muito evidente desta admiração, deste amor”, mas por aquilo que diz ser “uma cidade imaginária”. É, como reconhece, “a Sampetersburgo de Brodsky, de Gogol... Uma cidade que podemos apreciar quando estamos fora, quando não vivemos nela”.
(continua)