FOTO: Jornal de Negócios |
A propósito das manifestações de júbilo que, em diversos espaços da Internet, têm acompanhado a notícia da morte do economista António Borges, retenho a sensatez e serenidade destas palavras do espaço editorial do Diário de Notícias:
>>> (...) Em Portugal, mas não só, a tradição é que, depois da morte, todos os protagonistas passam a ser bons e insubstituíveis. Não é, manifestamente, o caso de António Borges. Mas uma coisa é criticar as ideias, naturalmente discutíveis, do economista. Isso é próprio da democracia e da liberdade de opinião de cada um. Coisa diferente é celebrar a morte de alguém. A Internet foi, como já se disse, o veículo escolhido para todo o tipo de insultos e festejos. Até podemos aceitar que esta plataforma se torne uma espécie de mesa de café dos tempos modernos. A forma livre e desabrida como se fala na Internet é normal, é natural, faz parte da natureza humana. Coisa diferente é permitirmos que ela se transforme numa espécie de lixeira ou sarjeta da opinião. Isso não é tolerável nem saudável para a liberdade e para democracia.
O que está em jogo é a questão mais recalcada nos tempos modernos de comunicação "global". A saber: nas redes que adoptaram o nome de "sociais", que modelo de sociedade se vive, difunde e consagra?
A resposta que fenómenos deste teor contêm é tragicamente simples: apesar das excepções, estar socialmente "em rede" significa, muitas vezes, viver a partir de uma desumanização militante de todas as relações, inclusive no momento da morte — o outro é menos que uma ruína abandonada, vale tão só aquilo que puder valer a sua difamação (e apenas por um breve período, já que neste universo agónico um dos poucos valores correntes é a possibilidade de mudar constantemente, e arbitrariamente, de alvo).
Podemos sempre (como, aliás, acontece nas palavras do DN) lembrar que o visado terá sido uma personalidade necessariamente polémica, a suscitar muitas paixões discordantes. Claro que sim, ninguém duvida disso. Em todo o caso, ainda mais impressionante e assustador que a avalanche dos insultos, é o facto de a maioria dos respectivos autores o fazer assinando o seu nome por baixo e, mais do que isso, expondo a sua imagem.
Trata-se de um ganho ilusoriamente democrático. Porquê? Não porque se defenda a estupidez do anonimato. Antes porque a prática "social" da rede levou a esta miséria conceptual e a este vazio moral: aquele que insulta, insultando em rede, imagina-se um iluminado protagonista de alguma redentora dinâmica social, não porque evite a barbárie discursiva, mas porque a assume — e assina.
Assim se consuma uma ainda mais inquietante desumanização: o cidadão que insulta já não se vê, não se pensa, tornou-se indiferente à imagem degradada de si próprio — e confunde-se com ela, acreditando que esse é um bom princípio para fazer amigos, polegares ao alto.