sábado, agosto 03, 2013

Anne Fontaine: entre romance e tabu

Com Paixões Proibidas/Two Mothers, adaptado do conto As Avós, de Doris Lessing (ed. Presença, 2008), Anne Fontaine estreia-se em língua inglesa, ela que tem sido um caso exemplar de uma produção francesa apostada em reinventar os géneros clássicos, em particular o melodrama. Tendo vivido parte da sua juventude em Portugal, estreou-se com a longa-metragem Les Histoires d’Amour Finissent Mal… en Géneral, que lhe valeu o Prémio Jean Vigo, em 1993. Nathalie (2003) foi o seu primeiro título a estrear nas salas portuguesas; Coco avant Chanel (2009), sobre as origens de Coco Chanel, ganhou um César para melhor guarda-roupa (Catherine Leterrier), tendo sido nomeado na mesma categoria para os Oscars de Hollywood — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (26 Julho), com o título 'Filmei uma história romanesca que joga com a noção de tabu'.

Podemos supor que alguns espectadores verão Paixões Proibidas como uma crónica romântica, outros como um conto moral. Qual a sua perspectiva?
Para mim é, antes do mais, a história de uma fusão amorosa entre duas mulheres que não podem viver uma sem a outra, prolongando essa relação extremamente forte através da relação que cada uma vai estabelecer com o filho da outra. É uma história romanesca que joga com a noção de tabu, mas que se mantém ambivalente, ambígua, perturbante, fascinante e sensual. Pensei sempre que era preciso encenar esse quarteto de modo quase natural, para que o espectador não se colocasse num ponto de vista moral, deixando-se envolver pelos desejos e sentimentos inéditos desta configuração de duas mulheres e os seus dois filhos.

Considera o filme uma adaptação “fiel” ou uma “recriação” do conto de Doris Lessing?
Encontrei-me com Doris Lessing há três anos e fiquei muito impressionada pela maneira como me falou deste conto que escreveu quando tinha 85 anos. Fiquei com a sensação de que a liberdade do seu tom e o fascínio por estes amores interditos me transmitiam uma espécie de força, uma evidência. Fiquei a saber que se trata de uma história verdadeira que um amigo dos dois jovens australianos lhe contara em duas noites bem bebidas nos bares de Londres. Tinha ficado seduzida por aquelas duas mulheres sem medo de desafiar a convenção, dinamitando, tal como a sua obra, os códigos da família. Mantive-me fiel, portanto, mas a escrita do argumento exigiu o aprofundar de cada personagem, tendo naturalmente assumido algumas liberdades em relação à última parte do conto, que termina de modo bastante abrupto.

Podemos caracterizar estas histórias de amor como incestuosas ou lésbicas? Ou é absurdo descrevê-las como tal?
São relações que, em função da promiscuidade daquelas duas famílias, decorrem de uma certa forma de homossexualidade. Em todo o caso, não há nessas relações nada que tenha a ver com o incesto, já que nenhuma das mulheres vai para a cama com o próprio filho.

O mar, a aldeia, a luz, são elementos vitais do filme. Como encontrou aqueles cenários?
Sabia que a história tinha lugar numa pequena comunidade australiana, longe das grandes cidades, uma espécie de paraíso no fim do mundo. No conto de Doris Lessing, a pequena comunidade em que vivem os quarto fica muito próximo daquela que encontrei, a cerca de quarto horas de Sydney, plenamente adequada ao desejo das duas mulheres de não abandonarem aquele enclave paradisíaco – o lugar reforça essas ligações que não estão submetidas ao olhar da sociedade.

E o elenco? Num certo sentido, nunca temos certezas sobre a idade das duas mulheres… Como foi o trabalho com Robin Wright e Naomi Watts?
Tentei encontrar duas actrizes ao mesmo tempo próximas e complementares, veiculando uma certa vulnerabilidade sem perderem a graça e o carisma. Naomi é, a meu ver, uma das maiores actrizes contemporâneas, pode interpretar uma enorme variedade de papéis exprimindo as emoções mais ambíguas. Quanto a Robin, talvez pela primeira vez, interpretava uma personagem solar, que toma decisões. Quando as reuni pela primeira vez, pareceu-me que era como se formassem um casal de mulheres.


O facto de, pela primeira vez, realizar um filme falado em inglês representou uma diferença importante para o seu trabalho?
Sim e não. Quando se trata de sentimentos, somos levados a trabalhar sobre as zonas incertas da interioridade, numa língua ou noutra – os seres não são mais subtis por serem ingleses ou franceses. A diferença mais significativa que encontrei foi o facto de mergulhar numa cultura que não é a minha, reforçando um paradoxal sentimento de liberdade.