quinta-feira, agosto 08, 2013

A América de Aaron Sorkin (2/3)

28 de Junho de 2013
Newsroom é um dos acontecimentos maiores dos últimos anos da televisão americana. Aaron Sorkin, o seu criador, inventou um canal televisivo que espelha, não apenas o mundo da informação “instantânea”, mas também as contradições simbólicas da América dos nossos dias — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (20 Julho), com o título 'A nostalgia utópica da América'.

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Nos antepassados de Newsroom, talvez seja inevitável evocar o exemplo bizarro, tão notável quanto pouco conhecido (dos sete episódios rodados, apenas três foram exibidos nos EUA), de On the Air (1992). Criada por David Lynch na sequência do impacto de Twin Peaks (1990-91), a série coloca em cena uma estação de televisão, também fictícia, dos anos 50, acabando por ilustrar um princípio fundador da obra de Lynch: mesmo os sinais mais reconhecíveis e, por assim dizer, mais justificados pelas memórias sociológicas, são mecanismos de entrada numa paisagem em que coexistem de modo perverso as experiências realistas e os desvios surreais.
Assim, fará mais sentido aproximar a concepção de Newsroom de uma herança cinematográfica, ética e estética, de que Network é tão só um símbolo fundador. Há outros exemplos extremos, em que a representação da televisão supera qualquer descrição realista para adquirir a dimensão metafórica de uma realidade “alternativa” que ameaça destruir todos os laços humanos: como uma ditadura do desejo, segundo David Cronenberg (Videodrome, 1983), ou como uma espécie de fábula tão cruel quanto inconfessável, na perspectiva de Peter Weir (A Vida em Directo/The Truman Show, 1998). Em qualquer caso, o ambiente de Newsroom tem mais a ver com uma tradição clássica, indissociável do espírito liberal do mais depurado classicismo de Hollywood.
Dois notáveis filmes sobre os bastidores da televisão podem balizar tal tradição. O primeiro, Edição Especial/Broadcast News (1987), de James L. Brooks, coloca em cena um subtil assombramento psicológico, expondo o perverso jogo de espelhos entre os que fazem televisão e a fruição das suas próprias imagens – como se cada um deles vivesse na permanente ameaça de se perder (porventura com os êxtases da perdição) nessas imagens. O segundo, Quiz Show (1994), de Robert Redford, revisita o caso verídico de um concurso televisivo dos anos 50 que foi viciado, colocando a mais básica e, hoje em dia, mais recalcada pergunta televisiva: até que ponto o aparato pueril da “fama” e dos “famosos” não representa um esvaziamento trágico da verdade mais íntima de cada um?
Não se trata, entenda-se, da mera afirmação de um discurso liberal (designação que, para todos os efeitos, envolve uma lógica moral distinta da perspectiva europeia apenas ligada à noção de “liberalismo económico”). No contexto artístico do cinema americano – e, muito em particular, no espaço clássico de Hollywood –, o liberalismo enraíza-se numa dupla exigência narrativa: a de lidar com os factos a partir de princípios de investigação com fortes componentes jornalísticas, cruzando as grandes convulsões colectivas com o dramatismo dos destinos individuais.
Escrevendo sobre Richard Brooks (3), um dos símbolos maiores do liberalismo clássico de Hollywood, Olivier-René Veillon chamava a atenção, justamente, para a sua formação: “Jornalista desportivo e cronista judiciário, Richard Brooks sabe que a verdade é concreta e que o único meio de a servir é encontrar a melhor estratégia para a revelar nos seus lugares mais remotos. (...) Brooks faz parte dessa geração marcada pela guerra – distinguiu-se ao serviço dos Marines – que quer enfrentar os problemas da paz, e também da guerra que recomeça (na Coreia e não só), através de um espírito de combate. Como Samuel Fuller, ele sabe que a guerra não se trava apenas nos campos de batalha e que o exército não é um mundo à parte” (in Le Cinéma Américain – Les Années Cinquante, Éditions du Seuil, 1984).
Nascido cerca de meio século depois de Brooks, Sorkin lida com outra conjuntura narrativa e, naturalmente, com outra América. A série Os Homens do Presidente (1999-2006), porventura o seu trabalho mais clássico, é ainda produto de uma visão tradicional das relações internas de um cenário político, por excelência (a Casa Branca, em Washington), mas envolve já uma componente muito típica dos nossos dias: o trabalho político não se limita a tentar controlar a sua percepção pelos media, uma vez que passou a integrar uma “consciência” mediática que transforma a política numa arte (nem sempre muito digna) de criar imagens capazes de satisfazer os seus próprios desígnios de poder.
Ora, justamente, Sorkin é alguém que tem plena consciência do facto de a realidade do século XXI ser vivida e representada através de sistemas de informação e códigos de percepção que já não podem ser enquadrados pelo clássico desejo (liberal) de verdade. Afinal de contas, como autor do argumento de A Rede Social, ele soube colocar em cena uma questão vital dos nosso tempos, questão todos os dias mascarada pelos valores dominantes do aparato televisivo em que vivemos: os novos sistemas de circulação de informação (a começar pelo Facebook) não podem ser entendidos como a expressão neutra de uma circulação transparente porque, como qualquer sistema cognitivo, instalam modelos específicos de leitura e narrativa, por assim dizer (re)inventando o próprio conceito de realidade e a possibilidade de nele instalar um discurso realista.
[continua]

(3) RICHARD BROOKS (1912-1992) – Começou por escrever argumentos para cineastas como Delmer Daves e John Sturges. Realizador desde o início da década de 50, distinguiu-se através de empenhadas crónicas sociais como Deadline USA (1952) ou Sementes de Violência (1955). Entre os seus títulos mais populares incluem-se uma adaptação de Tennessee Williams, Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), e o “western” Os Profissionais (1966).