Realizador de títulos como Sob a Areia (2000), Oito Mulheres (2002) ou O Tempo que Resta (2005), François Ozon possui a notável capacidade de explorar, de forma inventiva, os mais diversos géneros clássicos. Agora, com Dentro de Casa, propõe-nos um fascinante conto moral sobre o poder das palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Julho), com o título 'O génio de François Ozon.
O que é, afinal, uma narrativa? Interrogação antiga que, nos tempos que correm, conduz a uma imediata problematização da “transparência” da televisão. Porquê? Porque as linguagens dominantes no espaço televisivo tendem a produzir uma máscara de ingenuidade: não haveria narrativa (entenda-se: responsabilização pelas imagens e sons) porque a televisão não seria mais do que uma “transcrição” passiva do mundo à nossa volta... Faz sentido, por isso, aconselhar o filme Dentro de Casa, do francês François Ozon, a todos os que, dentro ou fora da televisão, tentam promover uma noção pueril, não apenas do labor televisivo, mas de todo e qualquer dispositivo narrativo.
Dentro de Casa é um dos filmes mais subtilmente divertidos que, em meses recentes, chegou às salas portuguesas: uma espécie de perverso teatro de vaudeville sobre os prós e contras da arte narrativa. E, para mais, colocando em cena as vicissitudes da escola contemporânea. Tudo se passa, então, a partir da experiência de Claude (Ernst Umhauer), um aluno de 16 anos cuja qualidade de escrita começa a impressionar o seu professor de francês, Germain (Fabrice Luchini). Empenhado em desenvolver o talento de Claude, Germain incita-o a uma observação cada vez mais apurada da realidade por ele escolhida. Acontece que essa realidade é nada mais nada menos que o quotidiano familiar de um outro aluno... Claude entrega-se com tal dedicação à sua tarefa que, a pouco e pouco, Germain começa a ficar algo perturbado (ainda que sempre seduzido) pelas componentes “voyeurísticas” da prosa do seu pupilo.
O ponto de partida de Dentro de Casa é a peça O Rapaz da Última Fila, do espanhol Juan Mayorga (já encenada entre nós pelos Artistas Unidos) que o próprio Ozon [foto] transformou em argumento cinematográfico. Assumindo-se como discípulo de uma radiosa tradição que passa por autores como o francês Jean Renoir ou o alemão Ernst Lubitsch, o cineasta consegue criar uma contagiante vertigem que, em última instância, discute as alianças entre realidade e desejo, percepção e imaginação, que qualquer narrativa envolve. O génio de Ozon passa pela forma como contorna a pergunta mais básica: afinal, aquilo que Claude conta nos seus textos é “verdade” ou “mentira”? Germain vai descobrindo (e nós vamos descobrindo com ele) que tal dicotomia é francamente insuficiente para lidar com o que está a acontecer. Porquê? Porque a escrita emerge como uma nova forma de poder no interior da realidade em que é lida.
Daí a espantosa actualidade política de Dentro de Casa. Através das suas peripécias, reencontramos o trabalho do narrador como um gesto primordial do próprio ser humano. Contar/escrever/partilhar uma história não é uma “transcrição” do mundo, antes o seu alargamento para novos parâmetros da realidade. Delicioso escândalo: na civilização das imagens, um filme que celebra o poder das palavras.