PIERRE BONNARD Dois Cães numa Rua Deserta c. 1894 |
1. Com o seu discurso do dia 10 de Julho de 2013, o Presidente da República veio dizer duas coisas muito básicas: primeiro, que é preciso um entendimento claro entre os três partidos (PSD, CDS-PP e PS) que assinaram o acordo com a troika; segundo, que a antecipação de eleições representaria algo de profundamente negativo e bloqueante para o país.
2. Que a primeira dessas coisas tenha sido proclamada durante meses pela maioria dos tele-comentadores, eis uma ironia cujo absurdo permanece por explicar: de facto, a partir do momento em que Cavaco Silva defendeu a mesma ideia, quase todos eles acharam por bem começar a propalar a ideia de que a saúde mental do Presidente não anda bem (e estou apenas a recorrer à prudência do eufemismo).
3. Quando à segunda questão — os custos reais e simbólicos, internos e externos, de eleições antecipadas —, devo dizer que me parece das poucas coisas sensatas que, em tempos recentes, foi dita por qualquer elemento de qualquer área da classe política.
4. Enfim, são temas com inevitáveis nuances subjectivas e longe de mim tentar "convencer" o leitor do que quer que seja, muito menos de sugerir que a tragédia cultural que é a nossa classe política possa ser resolvida estabelecendo uma lista redentora de "inocentes" e "culpados".
5. Acontece que a conjuntura deu uma volta, para muitas inesperada, mas plena de consequências simbólicas — sendo o simbólico uma das vertentes vitais do político. É nessa volta que deparamos com uma interrogação drástica: vai o Partido Socialista querer permanecer na posição de fiel da balança eleitoral (papel que, em boa verdade, apenas desempenhou de forma imaginária, num sempre esforçado wishful thinking para alimentar boas consciências) ou vai distanciar-se, para sempre, do imaginário da esquerda de raiz comunista?
6. Não por acaso, algumas figuras históricas do PS (cuja dignidade e entrega aos valores da democracia não estão em causa) já sugeriram que estão dispostas a ir até à ruptura com o aparelho partidário que, em muitos casos, ajudaram a edificar. Porquê? Porque o PS, enquanto entidade colectiva, nunca resolveu uma fundamental questão: a da demarcação clara em relação aos desígnios ideológicos do comunismo, transversais ao partido da foice e do martelo que (ainda) assume a respectiva designação e também a todos os clones, mais ou menos pós-modernos, do seu simbolismo.
7. Que os comentadores políticos estejam todos a Leste (honi soit qui mal y pense) desta dinâmica cultural, eis o que diz bem da sua dimensão moralista. Na maior parte dos casos, não passam de peões incautos da mesma ideologia de pueril purificação que leva os comentadores de futebol a não falar do jogo jogado, mas do facto de os resultados serem ou não... "justos"! Ou seja: sabem aplicar a expressão "real politik" mas, no fundo, ingenuamente, acreditam que o mundo muda, não através de gestos políticos, mas dos seus próprios comentários.
8. Para nossa maior desgraça (e, antes do mais, desgraça do próprio Partido Socialista) esta crise de identidade do PS pode vir a ser vivida como um jogo banal e obsceno de cadeiras e egos. O certo é que nela, e através dela, se joga a reconfiguração de todo o quadro político e simbólico a partir do qual têm sido vividos todos os actos eleitorais do pós-25 de Abril.
9. O que está em jogo é, afinal, o extenuar de um imaginário de raiz comunista que persiste na sociedade portuguesa como uma espécie de nostalgia reparadora da idealizada ocupação do aparelho estatal (que o PCP tentou, e falhou, em 1975). Que esse imaginário já só quase existe na dimensão festiva da iconografia popular, eis uma lição antiga que podemos encontrar, por exemplo, no teledisco de Go West, gravado pelos Pet Shop Boys em 1993... Mas onde está um político português, de esquerda ou de direita, que dê alguma atenção à inteligência criativa da cultura pop?
10. Há uma outra nostalgia que nos assalta. Tem a ver com a mais radical, e também mais esquecida, palavra de ordem do 25 de Abril. A saber: a hipótese de pensar toda a nossa existência colectiva para além da tradicional dicotomia esquerda/direita. O PS não saberá devolver-nos a sedução e o medo de tal hipótese. Mas é um facto que tem nas suas mãos a possibilidade de, pelo menos, transfigurar todo o sistema institucional de relações entre direita e esquerda. Quem, dentro do PS, tem serenidade e coragem de lidar com tal possibilidade?