Ray Manzarek
“Carmina Burana”
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(1983)
Dez anos depois de ter editado o seu primeiro álbum a solo o antigo teclista dos The Doors, Ray Manzarek (desaparecido na semana passada), apresentava o mais bizarro (e também um dos mais interessantes) da sua obra em nome próprio. Como ponto de partida tinha Carmina Burana, a cantata cénica que o alemão Carl Orff havia estreado em finais dos anos 30 e que, estreada nos EUA nos anos 50, se transformara entretanto numa das mais populares obras da música do século XX, gerando inúmeras gravações em disco e recorrentes presenças em salas de concerto. Nas notas do booklet que surgia na edição original em vinil, Ray Manzarek explicava a génese da cantata de Carl Orff, de como aquela música servia poemas medievais encontrados apenas no século XIX. A sua abordagem promovia contudo um encontro entre a partitura de Carl Orff (que conheceu outras mais leituras, como por exemplo uma “versão” de câmara), através de diálogos com instrumentos habitualmente conotados com a música elétrica, as vozes do coro procurando todavia uma aproximação mais evidente aos registos “clássicos”. A ligação entre os universos da música clássica e dos espaços da cultura pop/rock tinha conhecido várias expressões na década de 70, sobretudo através de afinidades que se desenharam entre alguns cultores do progressivo. A abordagem de Ray Manzarek não procurava contudo o trabalho com uma orquestra, certamente interessando-lhe por um lado o fulgor rítmico do trabalho de Orff por outro a natureza tímbrica da cantata, aqui entrando em cena instrumentos elétricos e teclados, num pequeno ensemble de apenas sete instrumentistas. Determinante na construção desta visão nada canónica de Carmina Burana está contudo a presença de Philip Glass, que coassinou com Kurt Munkacsi a produção, o seu habitual colaborador Michael Riesman tendo dirigido o trabalho coral. Não se imagine contudo aqui uma abordagem “minimalista” (ou sob herança direta do minimalismo), mas antes a expressão de uma noção de diálogo entre géneros musicais muito cara a Philip Glass que, recorde-se, antes tinha já produzido a banda pós-punk Polyrock e, pouco tempo depois, colaboraria com nomes como os de Paul Simon, David Byrne ou Suzanne Vega no seu magistral Songs From Liquid Days e voltaria a colaborar com figuras da cultura pop/rock como Mick Jagger (na banda sonora de Bent), Marisa Monte ou Pierce Turner. Longe de ser uma obra-prima, a Carmina Burana segundo Manzarek (e as marcas da sua identidade como teclista são evidentes, embora não ofusquem os demais elementos em cena) é uma interessante peça no jogo de diálogos entre os universos da cultura pop e da música clássica. Sendo que mais interessantes que estes diálogos através da abordagem a obras de outros nomes e outros tempos serão exemplos mais recentes que temos escutados entre figuras como Nico Muhly, Björk, Owen Pallett ou Rufus Wainwright. Mas sem o encetar de diálogos no prog de 70 e em abordagens como esta de Manzarek em 83, não se tinha chegado onde hoje estamos. Há 30 anos este era um encontro entre dois mundos. Hoje em dia são muitos os que acreditam que, na verdade, estamos a falar de seres do mesmo mundo, as velhas noções de fronteira de género tendo vindo a desabar como outros muros que, por teimosia ou medo, o homem por vezes constrói.