Na televisão francesa, a cobertura do Festival de Cannes destaca-se pela sua abrangência informativa e dedicação cinéfila — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Maio), com o título 'Cannes contra Cannes'.
Vale a pena acompanhar a programação do Arte sobre o Festival de Cannes [15/26 Maio] e consultar os respectivos ecos no site do canal. Desde logo porque a sua cobertura se apresenta exemplarmente diversificada, incluindo informações sobre os filmes, pequenos apontamentos de crónica social e reportagens/comentários por Olivier Père (actual director da Unidade de Cinema do Arte); depois porque a estratégia deste projecto franco/alemão continua a passar por um importante investimento na produção cinematográfica.
Esta questão emerge, aliás, como especialmente actual, já que o festival deste ano tem servido de motor para uma discussão alargada, na comunicação social, sobre a evolução dos modos de financiamento da produção cinematográfica. Em causa estão os “vícios” de um sistema começado a construir há cerca de três décadas, no tempo de Jack Lang à frente do ministério da Cultura. É bem verdade que a maioria enaltece as virtudes de tal sistema, vital na consolidação da chamada “excepção cultural” francesa; mas há também quem considere que alguns agentes da profissão evitam correr riscos, optando por gerar “pequenos” projectos, mais ou menos convencionais, sem qualquer empenho em trabalhar a respectiva promoção.
Escusado será dizer que não se trata de uma conjuntura simples, tanto mais que a França, mesmo sendo dos países com mais sólida presença de espectadores nas salas, apresenta também sinais de uma baixa regular do número desses espectadores.
No pólo oposto de tudo isto, estão as visões anedóticas, profundamente gratuitas, que muitas reportagens dos canais generalistas vão dando do dia a dia de Cannes. Há repórteres mais ou menos histéricos que conseguem gastar o seu precioso tempo em colossais banalidades, sem qualquer informação útil sobre os filmes; até já vi um a exibir-se perante a câmara com o seu smoking, mas aparecendo, da cintura para baixo, em roupa interior... Face a tais disparates, ainda há quem pergunte, com cínica candura, de onde vem a crise dos valores clássicos da cinefilia.